Arquivo da categoria: A excêntrica família do Senhor Quadros

Crônica de uma inútil fuga carnavalesca 

Desde cedo desenvolvi uma inaptidão voluntária para a festa de carnaval. Há quem diga que isso se deve ao fato de eu ter crescido em Pomerode, a única cidade do Brasil em que os dias de folia não são feriados, creio eu. Ao longo da minha vida eu também não aprendi a dançar uma única valsa, sendo assim, imaginem ousar uma roda de samba. Branco, gordinho e desengonçado, em uma festa que ostenta aquilo que chamamos de ideal do corpo pós-moderno, seria eu motivo de Bullying (para utilizar uma palavra da moda).
Quando eu era criança, por motivo de falta do que fazer, até assistia com apatia e desinteresse aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Meu pai cuja essência da vida se resume em estar sentado em frente a um televisor, não se cansa de me perguntar, se eu continuo curtindo os desfiles. Cansei de responder que não, afinal já fazem tantos anos.
Na adolescência descobri que carnaval era uma das melhores épocas do ano para se acampar. Durante muito tempo peguei a mochila e subi o Morro Azul isolando-me, ora com amigos, ora sozinho, da humanidade que segundo os meus olhos, não fazia outra coisa a não ser rebolar e se se mostrar para o outro.
Depois mudei-me para Florianópolis. Lá sim, comemora-se o dito carnaval de maneira, digamos, exemplar. Por sorte, muito antes do carnaval, encontrei Simone. Namoramos, noivamos, casamos e, ao contrário de toda aquela gente que, durante os dias folia, viajavam dezenas de quilômetros para proceder com a invasão à Ilha de Santa Catarina, nós fugíamos dela e nos refugiávamos no velho oeste catarinense.
Em 2009 nos mudamos para Alemanha, para minha felicidade, dias antes do carnaval. Sendo Pomerode uma cópia, mimeografada, do país germânico, deduzi logicamente que aqui também não se comemorava a dita festa. Mero engano. Fiquei sabendo da cidade de Colônia, suas extravagâncias, ruas invadidas por milhares de foliões. Por sorte o meu destino, dentro do país, era outro. Uma região minimamente habitada. Uma comunidade de não mais de duzentas pessoas rodeada de floresta por todos os lados, com exceção da parte de cima e da parte de baixo, logicamente. Era certo que ali não haveria essa história de carnaval.
Lembro-me da primeira conversa. Explicações de como seria o nosso trabalho na comunidade, o que iríamos desenvolver com as pessoas, conceito de família, necessidades especiais e lá pelas tantas, a insólita e inesperada convocação para o baile de carnaval, um dos eventos mais aguardados do ano pelos habitantes do vilarejo.
Desde então percebi que não adiantava fugir e a única coisa sensata a fazer era cair no samba. Agora, porém, com a minha excêntrica família.

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A nova moradora

A vida se mostra agradável. Um calorzinho dá boas vindas a Primavera que já não tarda a aparecer. Enquanto isso no sul do mundo os quase quarenta graus diários e a falta de chuva, faz com que as pessoas que não estão à beira do mar, sofram seus bocados. Cada telefonema para minha mãe é um lamento sobre o suposto aquecimento global. Depois das reclamações habituais, a cobrança pela não postagem de novos vídeos do Gabriel e, enfim, a pergunta sobre a minha excêntrica família.
Faz duas semanas que recebemos uma nova moradora aqui em casa. Estou sempre a contar para a mãe os detalhes da nova experiência. Até mesmo porque quando chega alguém novo a casa se enche de descobertas. Novas relações sociais são estabelecidas, paradigmas caem, emoções vêm à tona. Dentro do novo contexto, mudamos todos.
Quando um novo membro nos chega evitamos ler os diagnósticos. Claro que nos é importante saber quais medicamentos a pessoa precisa, se ela é agressiva ou tem tendência suicida. Algumas informações são essenciais. O problema, muitas vezes, é o preconceito gerado por um diagnóstico mal interpretado. Aqui em casa moram autistas que adoram abraçar e com vida social agitada. Em contra partida existem pessoas com síndrome de Down introspectivas e que resistem ao toque. Se nos apegamos muito as características gerais da “doença” estamos sujeitos a erros irreversíveis.
Mas vamos a nossa Bella…
Sábado, ela queria muito fazer as compras sozinha. Precisava de alguns novelos de lã, café instantâneo, chocolate e biscoitos.
Bom, para saber se ela tinha noção de valores, apresentei dois probleminhas simples…Trouxe uma barra de chocolate, um frasco de xampu e perguntei… A barra custa dois euros e o xampu cinco. Quanto você terá que pagar? Os dedos começaram a se mexer, ela espremeu os olhos e me disse certeira: seis euros!
O segundo probleminha… O total da minha compra foi de dezesseis euros. Eu dei uma nota de vinte. Quanto eu recebo de troco?
Novamente dedos, testas franzidas, língua de fora e uma mão cheia de certeza: Cinco euros, lógico!
No mundo dos negócios cotidianos, a nossa Bella é só lucro.

lucro

A senhora Boa e a disfunção erétil

Lembram-se dela? Eu já escrevi sobre ela aqui. Pois então, sexta-feira fiquei com esta figura à espera do urologista. Ela está a sofrer de incontinência generalizada. No começo fazia, vez ou outra, na cama. Depois começou a fazer nas calças quando contávamos alguma piada ou quando ficava nervosa por não ser a primeira a pegar a garrafa de café.
Tal situação a deixa, logicamente, triste. Até então, para o médico da comunidade, tudo estava dentro da normalidade. Simone, não satisfeita, marcou um urologista para a senhora Boa.
Estávamos na sala de espera. A senhora Boa, além de outras coisas, tem fixação por prospectos. Estava ela a caça de panfletos. Enquanto eu, compenetrado na tela do celular, apanhava para chegar aos 400 metros na pista mais fácil do Hill Climb Racing. A Senhora Boa encontra alguns cadernos, pega-os com pura alegria e inicia a leitura.
Duas velinhas, sentadas a nossa frente, dialogavam em alemão antigo. No celular, eu atingia a marca histórica de 338 metros, uma superação sublime da minha capacidade. A senhora Boa me fazia perguntas, no entanto eu não podia desviar minha atenção. Murmurava micro palavras assertivas, sem lhe dar muita bola. 374 metros, um passo insignificante para a humanidade, um salto gigantesco no caminho da minha evolução pessoal. As velhinhas pareciam ter tido um ataque de riso, estavam a soluçar. 397 metros, eu me distraio, o jipe capota, as velhas já estão a chorar fazendo uma algazarra que ecoa por toda sala de espera. A senhora Boa briga com o prospecto. Vira o papel de um lado, vira de outro. De repente balança a cabeça negativamente e diz… “Eu não posso levar isso para casa! Eu não posso levar isso para casa!” Diante da situação, um tanto estranha, eu peço para olhar o folheto. Ela me entrega a brochura com uma foto e um título deveras esclarecedor. O nome da senhora Boa é chamado pela enfermeira. Eu levanto, olho para as duas senhoras e me valho do clichê “Não é isso que vocês estão pensando!” As duas respondem um curto “entendemos!” e voltam a rir escandalosamente.

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O senhor Raio de Sol e olho de peixe

Queria muito que se tratasse de uma adoração do Senhor Raio de Sol pelo magnífico álbum de Lenine e Suzano. Infelizmente não é este o caso. Estamos falando aqui do Papillomavirus que causa a tal verruga plantar. O Senhor Raio de Sol está a criar, involuntariamente, um desses bichos. O tal ponto escuro e duro localizado precisamente no dedo médio do pé direito tem tirado o sono do meu nobre amigo. Sendo ele um dos meus adotados e, eu, o seu cuidador oficial, tratei de levá-lo ao médico o quanto antes. 
A consulta durou menos do que cinco minutos e o tratamento uma coisa muito simples. Curativo, com uma pasta verde, a ser trocado todas as manhãs. É aqui, meus amigos, que começa a história.
O Senhor Raio de Sol tem muitos medos e o maior, talvez, seja o de ser esquecido. É claro que tem um por que biográfico nisso tudo. Um dia, quem sabe, eu entro nos detalhes. 
Então, combinei com ele que a troca do curativo se daria todas as manhãs, no seu quarto, um pouco depois das sete. Na verdade eu sempre o “visito” nesse horário para saber como ele passou a noite, esvaziar a sua garrafa de urina e ajudá-lo a calçar os sapatos. Faz cinco anos que ele faz parte da minha rotina e, só no período de férias, logicamente, que um outro alguém assume o cuidado para com o senhor Raio de Sol.
Acontece que o medo a falta de paciência do meu amigo faz com que uma cena se repita constantemente. Um eterno retorno sem mito algum, um déjà vu quotidiano que me tira do sério. 
Meu apartamento fica no piso superior. Assim que abro a porta do meu privado reduto, ao olhar para baixo, enxergo o corredor de entrada da casa grande. Toda santa manhã, desde que começou o tratamento, dez para as sete, observo o senhor Raio de Sol cambaleante a empurrar o seu andador, com o pé direito descalço no piso de cerâmica gelado, tendo em uma mãos, junto ao pegador de borracha do seu veículo de locomoção, um sapato, uma meia de lã colorida e o curativo de pasta verde já amassado e com metade do ácido salicílico a lambuzar os seus dedos. 
Ele segue, a passos de tartaruga, em direção a sala de jantar, chamando desesperadamente o meu nome. Eu, já descendo as escadas, anuncio que o Sol raiou antes da hora, juntamente com um sorriso, o desejo de um bom dia e a indagação: Por que você não está no seu quarto? 
Como em uma peça teatral premeditada, o senhor Raio de Sol dá, não sei ainda como, um pulo, que simboliza um susto enorme, olha para mim com uma expressão de espanto, logo em seguida de alívio e diz: Graças a Deus que estás por aí. Achei que tinhas esquecido o nosso encontro. Já tenho tudo em mãos.

Para que jamais esqueçamos as nossas bundas

A bunda, segundo a mídia do senso comum, é um objeto de adoração. Com uma boa bunda a mulher consegue o status de fruta e assim pode aparecer em programas televisivos incultos e machistas. Eu, portanto, não quero falar disso aqui no blog.Existe uma dimensão da bunda como um todo e das partes que a compõe que está além desse tal objeto de desejo. A cobiçada bunda é, além de um instrumento de prazer, também o cano de escape por onde flui (quando tudo vai bem) aquilo que o nosso corpo não mais precisa. Sendo assim, as bundas do mundo requerem atenção e cuidado.

Não no sentido puramente estético… Bunda sem celulite, com silicone, empinada e com as periferias do orifício central clareadas. Isso não imprime o cuidado que devemos ter para com essa almofadada região do nosso corpo.

Em princípio cada um cuida da sua. A limpeza cotidiana é algo íntimo, privado. Fico sempre a pensar nas grandes personalidades e na higienização das suas nádegas e fossos.  Barack Obama, sua provável bunda morena e sem pelos, em algum banheiro da casa branca. Suando frio, forçando a barriga e empurrando aquilo que não mais lhe cabe, enquanto a poucos metros dezenas de assessores o aguardam, talvez até o primeiro ministro de algum país europeu.  Angela Merkel e sua bunda branca, molenga e talvez peluda, puxando freneticamente o rolo de papel higiênico.  Até a nossa Dilma que também, creio eu, tem uma bunda, se apressando em algum banheiro de Brasília antes de entrar ao vivo para uma entrevista com a Miriam Leitão.   Imaginem o Kim Joung-un ignorando a sua bunda no ato supremo da defecação por estar quase alcançando três estrelas em algum nível do Angry Birds versão Star Wars. Bom, todos eles vão ao banheiro, soltam seus tão humanos grunhidos e deixam em seus requintados vasos sanitários restos tão comuns quanto os nossos. Depois se limpam, invadem países, espionam blogues como este, criam armas atômicas de incrível poder e por aí vai…

Eu, como pedagogo social, adentro com minha intima e excêntrica família numa esfera que transcende a minha própria bunda.

Ao contrário de um enfermeiro que se depara com bundas anônimas, eu me dedico especificamente as bundas de Thommy e do senhor Raio de Sol. Posso dizer que conheço cada poro, cada depressão oriunda das celulites encravadas naquelas montanhas de pele e gordura, além do vale da sombra da morte peludo e da última etapa da rede de saneamento básico daqueles dois seres.

Existe na limpeza que se sobrepõe ao meu próprio corpo, algo de divino. Uma tradição cristã que metaforicamente é retratada pelo lava pés. Poderia, por que não, ser o lava bundas. A bunda carrega a essência da genial, porém gasta e desbotada pelo número infinito de postagens e repetições, frase de Galeano… A bunda é uma festa.

Eu estou sempre atento a um roxo oriundo de uma batida do senhor Raio de Sol ou da hemorroida que de tempos em tempos tortura meu nobre amigo Thommy, fazendo-o tomar o amargo extrato de Hammamelis e me obrigando a passar pomada por toda aquela região. Ele silencia. Eu faço inconscientemente caretas e ao final, dando um tapinha em uma das suas nádegas, brinco: Por hoje é só pessoal.