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Festa de agradecimento a Colheita

Como agradecer aquilo que se colhe, se nós já não colhemos mais nada?

Os supermercados exibem gigantes cenouras uniformizadas, bem como batatas escovadas, repolhos brilhantes, tomates em vermelho perfeito. Tudo virou padrão. Já não importam mais as estações. Tudo está, a todo o tempo, disponível.

Acho que era assim que eu me sentia quando passei a ser agricultor. Não havia o porquê do agradecimento.

Aqui na comunidade é diferente. Plantamos e colhemos com nossas próprias mãos. Evitamos supermercados. Isso significa o seguinte: Nossos morangos amaduram entre maio e junho. Todo mundo por aqui aguarda com enorme alegria o mês do morango, assim como também existe os meses do tomate, do milho, das abóboras. Tudo tem uma época determinada e isso é respeitado. No mundo do consumo, podemos comer morangos todos os dias. É simples, basta comprar. Os morangos sempre vão enfeitar alguma prateleira refrigerada de algum asséptico supermercado.

Acho legal no outono e no inverno comer sopa de abóbora e alho porró, no verão se deliciar com pimentões e tomates, na primavera levar para casa o verde vivo das primeiras alfaces.

Então, hoje foi a nossa festa de agradecimento a colheita. Preparamos um altar com as leguminosas da estação, montamos jogos para que a nossa vila pudesse interagir. Tivemos o clássico churrasco de salsicha orgânica e as deliciosas e cucas com Café.

No meio do êxtase voltei em pensamento a Pomerode. Lembrei-me dos bailes do colono realizados naqueles antigos salões dos clubes de caça e tiro onde as hortaliças eram penduradas no teto. Bandinhas folclóricas alemãs sempre conferiam aquelas festividades um tom de Oktoberfest. O mais especial, porém, era o café da manhã. Aquilo sim era um banquete adornado por cucas de farofa e banana, bolo de queijo além do fabuloso Heringsbrot, um pão caseiro com rodelas de ovo e sardinha.

Descobri também que entre o baile do colono e a festa de agradecimento à colheita existe uma intrínseca relação. As duas simbolizam o pequeno e honesto produtor. É impossível imaginar um agropecuarista de soja no Mato Grosso reunir-se com seus explorados e agradecer a supersafra. Ali, nada mais tem significado. Os grãos, assim como o coração do latifundiário, estão vazios.

Ontem, diante daquelas pessoas, me senti orgulhoso por ter um íntimo contato com as verduras ali colocadas. Juntei minhas mãos, fechei meus olhos e agradeci baixinho o fato de, na aurora de minha vida, perceber, com calos nos dedos, que eu vivo na Terra. 

Preto, a mais linda flor a se cheirar

Fatalmente e infelizmente um dia acontecerá com você. Em algum momento da sua vida alguém contará uma daquelas piadas racistas e preconceituosas que circundam o mundo dos fracos. Lembro que quando era criança alguém me perguntou se eu já tinha visto flor preta. Respondi, sem pensar, que não. A inevitável resposta “é que preto não é flor que se cheire” veio na sequência e deixou-me, além da indignação, uma dúvida que carreguei por anos. A verdade é que mesmo sabendo que se tratava de algo muito grave, nunca saí do âmbito flora da questão e durante muito tempo questionei-me sobre a existência de uma flor negra. O fiz em aulas de biologia, pesquisei em enciclopédias, fossei, sem sucesso, aqui e acolá. Eis que, com o advento da internet até encontrei algumas fotos, mas nada palpável.

Aos poucos a chama da curiosidade se apagou, até que eu, em “meu” filosófico jardim, por uma questão de falta de pessoal, fui selecionado para cuidar das flores. Normalmente permaneço no âmbito das leguminosas e pouco passeio pelos canteiros floridos, mas desde fevereiro esse mundo desconhecido, escondido entre a casa de vidro e o túnel de lona, se abre para mim e, tudo o que plantei, agora floresce.

O encantador nisso tudo é que eu não tinha ideia do que havia plantado. A conjunção entre os nomes e o vir-a-ser de cada flor ocorre paulatinamente na medida em que elas desabrocham. Narcisos, amores-perfeitos, gerânios e por fim, a petúnia negra (por quem me apaixonei). Seu cheiro é suave, envolve na medida certa, é doce e vicia. Quem a tem poderia cheirar seu negrume uma vida inteira sem enjoar. Por isso lhes digo que o preto tornou-se, para mim, a mais linda flor a se cheirar…   

Foto da minha petúnia negra

O pesadelo do cio da terra

Tenho tido um pesadelo terrível que se repete já há alguns dias. Tudo começa com uma linda imagem da horta onde eu trabalho.  Os pés de milho já estão grandes, os tomateiros exibem rechonchudos e avermelhados frutos, ervilhas se exibem depois do orvalho, robustos pepinos se escondem no mato verde. Ao fundo é possível ver a casa de vidro e os caminhos que nos levam até a pequena loja onde vendemos orgulhosos nossos orgânicos produtos. Descendo uma lomba com o carrinho de mão abarrotado de leguminosas e visivelmente satisfeito encontro-me eu.

Eis que de repente, sem nenhuma explicação, inicia-se um processo irremediável de desertificação. Tudo é tão rápido que em uma fração de segundo encontro-me num campo vazio a semear insistentemente a terra que ignora meu ser. Os colegas alemães riem e o italiano que trabalha conosco no filosófico jardim balança a cabeça negativamente dizendo… Esses brasileiros…

Exatamente nesse momento acordo desnorteado. Uma gama de desagradáveis sensações percorre meu corpo. Fico enjoado, chego a secar uma garrafa de água. Devido ao suor excessivo e o cheiro azedo, me obrigo a tomar uma ducha gelada e só muito tempo depois volto a dormir.

Uma das explicações para o funesto e repetitivo sonho é o fato de eu, por esses dias, estar a semear a terra no filosófico jardim. Sempre tive medo de que as sementes jogadas por mim não vingassem. Ano passado aconteceu com um polonês colega nosso. Antes de proceder com a semeadura, o homem discursou sobre o movimento cósmico dos braços no ato de lançar os grãos, harmonia com a natureza, direção do vento e mais uma porção de coisas que ele aprendeu com um guru belga (existem gurus na Bélgica?).    

Passadas algumas semanas, os canteiros permaneciam em terra, sem um só sinal de germinação. Assim eles ficaram, para desolo de nosso amigo, uma longa data até que alguém se dispôs a ressemear e salvou a lavoura. O polonês virou piada e, depois de muita humilhação, foi embora de nosso filosófico jardim. 

Fica a pergunta que assombra minhas noites… Farão as pequenas sementes que levo com carinho em meu verde ventre a mesma coisa que fizeram com o  polonês?

O direito pela livre escolha de terra

Totalmente recuperado, voltei ao filosófico jardim. Com o consentimento de meu médico, posso novamente e felizmente “pegar no pesado”. Faltando uma semana para a feira da primavera, por aqui impera o caos. No entanto, para minha sorte, fui escalado para cuidar das plantas em vaso. São pequenos vegetais que tenho que plantar um a um, com o máximo de cuidado e especial atenção ao tipo de terra utilizada.

Sabem aquela imagem da mãe desesperada cujo filho pequeno só come determinado alimento e fica choramingando quando não é atendido? Sinto-me assim diante das pequenas mudas.   É como se eu as ouvisse reclamar quando, porventura eu coloco um ingrediente a mais no seu composto ou troco o tipo de terra. Às vezes elas até murcham em absoluta tristeza. Digo sempre que nossas plantas são manhosas. Escolhem sua terra com uma minúcia digna de quem tem demais.
Explico-me. Os tomateiros, por exemplo, gostam de terra fofinha, escura, enriquecida com punhados de calcário e lascas de chifre de boi. Se não realizamos tal desejo, simplesmente secam.  Já os jovens pés de repolho só aceitam terra “cozida”.  Para eles, tivemos que comprar o “Dampfer” que, através do vapor, coze a terra e mata os micróbios. As abóboras e os pepinos preferem terra misturada ao composto de cozinha. Quanto mais malcheirosa, mais contentes eles ficam.

Os Morangos, até serem plantados, se deleitam em bacias de água cristalina. Anseiam em ser hidropônicos como as alfaces brasileiras. E os aspargos? Temos que fazer montes de areia limpa para eles ficarem lá, escondidos, dando uma de albinos, pois se pegam um pouco de sol, enverdecem.

Agora, o pior aconteceu quando recebi as berinjelas. Ingenuamente perguntei se tinha que adicionar algum elemento a terra que eu utilizaria. “Elemento?” Perguntou-me o jardineiro chefe assustado. “Essas berinjelas só aceitam terra vulcânica da região de Vogelsberg, caso contrário, se recusam a crescer”.



As obras de cada um

Os elementos estão todos espalhados por aí, pendurados em árvores, voando como pássaros, escondidos embaixo da terra, mergulhados no oceano ou flutuando em cima dele. Talvez permanecessem durante a eternidade num determinado local ou seriam deslocados por outra força de igual natureza, mas o fato é que eles permaneceriam sendo apenas elementos soltos na imensidão que é esse planeta.
Então chegamos nós. Eu, você, que também somos feitos dessas mesmas coisas, só que por alguma razão que até hoje não sabemos explicar, saímos diferentes. É como exclamar! Essa capacidade que temos e, que é muito mais do que gritar, pois o fazemos somente quando estamos estupefatos diante de algo. Cada um a sua maneira. Com os braços erguidos, testa franzida, olhos fechados, mãos juntas, dedos em riste, lágrimas, tudo humano, demasiadamente humano.

Além disso, temos também a incrível capacidade não só de vociferar, por exemplo, “que belo!”, mas também de criar a beleza.

Somos essencialmente seres criadores. Cada povo construiu a sua maneira aquilo que achava, de acordo com suas crenças, magnífico. Os egípcios ergueram as pirâmides, os gregos o Partenon, os brasileiros o Maracanã. O mesmo acontece com cada um. Não passamos por aqui sem conceber. A concepção é intrínseca a vida humana.

Hoje, vivendo intensamente os meus trinta anos, percebo que arquitetei e ergui com minhas mãos coisas das quais posso me orgulhar.

A primeira delas foi o banco de pedra. Durou o tempo de dois entardeceres. Apenas eu, luvas, uma pá e o companheirismo de Simone. Suei para arrastar aqueles blocos até o lugar onde seria edificado, depois fiz o fundamento e sobrepus as pedras. Hoje, em dias de primavera ou no calor do verão me sento nele para ler ou pensar sobre a vida.

A minha segunda grande obra foi um monte de composto. Aprendi a técnica com um usbequistanês chamado Ibrohim que foi voluntário por um ano e depois voltou ao seu país. O modo como se devem intercalar as folhas, o estrume de cavalo e o calcário. A base larga e as bordas prensadas com os próprios pés. Ano que vem espalharemos o adubo no campo e, parte de mim estará lá.

Por último, as cercas onde esse ano crescerão os feijões. Um conjunto de três. Cada uma com aproximadamente de 30 metros, isso significa que estou quase chegando aos cem metros de experiência. Dois dias e um vento que faria muitos bravos desistirem. Primeiro os furos na terra, então os esteios, depois o ato de esticar a tela e pregá-la. Foi difícil, complicado, doloroso, mas está feito.

Assim, aos poucos dentro da minha “minusculosidade” feliz, estou criando o meu jardim. E você? A quantas andam as suas obras?