O senhor Raio de Sol e olho de peixe

Queria muito que se tratasse de uma adoração do Senhor Raio de Sol pelo magnífico álbum de Lenine e Suzano. Infelizmente não é este o caso. Estamos falando aqui do Papillomavirus que causa a tal verruga plantar. O Senhor Raio de Sol está a criar, involuntariamente, um desses bichos. O tal ponto escuro e duro localizado precisamente no dedo médio do pé direito tem tirado o sono do meu nobre amigo. Sendo ele um dos meus adotados e, eu, o seu cuidador oficial, tratei de levá-lo ao médico o quanto antes. 
A consulta durou menos do que cinco minutos e o tratamento uma coisa muito simples. Curativo, com uma pasta verde, a ser trocado todas as manhãs. É aqui, meus amigos, que começa a história.
O Senhor Raio de Sol tem muitos medos e o maior, talvez, seja o de ser esquecido. É claro que tem um por que biográfico nisso tudo. Um dia, quem sabe, eu entro nos detalhes. 
Então, combinei com ele que a troca do curativo se daria todas as manhãs, no seu quarto, um pouco depois das sete. Na verdade eu sempre o “visito” nesse horário para saber como ele passou a noite, esvaziar a sua garrafa de urina e ajudá-lo a calçar os sapatos. Faz cinco anos que ele faz parte da minha rotina e, só no período de férias, logicamente, que um outro alguém assume o cuidado para com o senhor Raio de Sol.
Acontece que o medo a falta de paciência do meu amigo faz com que uma cena se repita constantemente. Um eterno retorno sem mito algum, um déjà vu quotidiano que me tira do sério. 
Meu apartamento fica no piso superior. Assim que abro a porta do meu privado reduto, ao olhar para baixo, enxergo o corredor de entrada da casa grande. Toda santa manhã, desde que começou o tratamento, dez para as sete, observo o senhor Raio de Sol cambaleante a empurrar o seu andador, com o pé direito descalço no piso de cerâmica gelado, tendo em uma mãos, junto ao pegador de borracha do seu veículo de locomoção, um sapato, uma meia de lã colorida e o curativo de pasta verde já amassado e com metade do ácido salicílico a lambuzar os seus dedos. 
Ele segue, a passos de tartaruga, em direção a sala de jantar, chamando desesperadamente o meu nome. Eu, já descendo as escadas, anuncio que o Sol raiou antes da hora, juntamente com um sorriso, o desejo de um bom dia e a indagação: Por que você não está no seu quarto? 
Como em uma peça teatral premeditada, o senhor Raio de Sol dá, não sei ainda como, um pulo, que simboliza um susto enorme, olha para mim com uma expressão de espanto, logo em seguida de alívio e diz: Graças a Deus que estás por aí. Achei que tinhas esquecido o nosso encontro. Já tenho tudo em mãos.