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Os desfiles do dia sete

Os desfiles do dia sete de setembro na Pequena Alemanha, assim como a cuca de farofa de minha oma, permanecem, com um certo saudosismo, em minha memória.

No meu tempo, o Schroeder ainda tinha a fachada pintada de branco e somente uma pequena parcela do centro era calçada.

Ali, naquelas ruas de paralelepípedo, tendo de um lado, como fundo natural, o imponente Morro da Turquia e do outro a charmosa torre da igreja Luterana, estávamos nós a cumprir com o nobre dever cívico.

Éramos divididos em pelotões. Meninas de um lado, meninos do outro. Cada ano escolar pressupunha um grupo. Os alunos eram milimetricamente enfileirados, do menor ao maior. Todos a bater o pé, ao mesmo tempo, no chão! Professoras neuróticas a nos puxar e a gesticular como se estivessem a ter um ataque histérico. Tudo tinha que ser perfeito em nosso louvor a pátria mãe, inclusive o uniforme escolar. Se uma das professoras pegasse algum aluno com uma camiseta mal passada, amarelada ou com alguma mancha, era, por nossas educadoras, sumariamente condenado, sem direito a defesa.

O ápice do desfile, o destino final, o sentido de tudo aquilo era, sem dúvida, a tribuna de honra, onde ficava o prefeito, a primeira-dama, representantes do clero e, lógico, da burguesia pomerodense.

Dizem as más-línguas que, se ali ocorresse alguma falha, se alguma criança fizesse uma bobeira e o Prefeito se levantasse e apontasse o polegar para baixo, o indivíduo e sua família, após o desfile, desapareciam sem deixar vestígios.

Lembro-me ainda do prefeito Kika, sua túnica branca, toga vermelha e coroa de louros a nos observar criticamente. Ah, quando medo sentíamos ao passar pela tribuna.

O compasso dos nossos desfiles não era dado apenas pela batida dos Bambas e Congas no chão. A fanfarra do colégio com suas caixas, surdos, bumbos, pratos e trombetas soavam ao longe e ritmavam a nossa idolatria a pátria amada.

O verde e o amarelo estavam por todos os lados. O Hino da independência era entoado a plenos pulmões. Morávamos em Pomerode, mas ali, naquela faísca de tempo, éramos brasileiríssimos. Na verdade nosso ufanismo durava até entrarmos em nossos automóveis, muitos deles a ostentar em suas traseiras, pequenos adesivos azuis, com a pérfida frase “O Sul é o meu país”, base sagrada de nossa hipocrisia.

Mela – A lenda

De todas as figuras históricas da nossa Pequena Alemanha, o Mela é, talvez, a mais enigmática de todas. Perambulava pela vastidão do centro com um triciclo adaptado. Tal veículo era impulsionado pela força dos seus braços, pois Mela tinha paralisia nas pernas.
Quando nossa trupe se encontrava, depois da aula, no prédio do extinto BESC – Banco do Estado de Santa Catarina, era comum tê-lo como tema principal de nossos causos. Ouvíamos sempre dizer que o Mela era milionário e morava em uma mansão completamente automatizada, tipo Jetsons. Ele pedalava o seu triciclo até o banheiro onde havia um enorme lava jato. Mela entrava sujo e malcheiroso da fuligem dos automóveis que circulavam pela Cidade mais alemã do Brasil e saía brilhando, cheiroso, seco e dez anos mais jovem. Fábio tinha a teoria de que Mela vivia na floresta e era cuidado por ninfas. Assim que chegava em casa, banhavam-no com água-de-colônia, cozinhavam as mais caras iguarias e dançavam nuas ao seu redor, como aquelas mulheres do quadro de Matisse.

Lembro que o ponto principal de coleta do Mela era em frente ao Zoológico. Ali, uma vez, nos estranhamos. Foi a primeira e única vez que nosso querido Mela se dirigiu a minha pessoa. Eu era menino ainda e ganhava uns trocados vendendo picolé. Oitenta por cento da quantia que eu comercializava era comprada pela minha mãe, o resto eu vendia naquele que era considerado o melhor ponto da cidade. Eis que eu estava a conquistar o dinheiro para a compra de um Mega Drive, quando ele veio com o triciclo e quase me atropelou. Aquele era o seu território e eu havia cometido um enorme erro. Ele veio, com dedo em riste, para cima de mim. Eu me esquivei, larguei a bicicleta, caíram os picolés. Turistas se aglomeram para ver o embate que no fim, nos rendeu bons trocados. Um grupo de paulistas nos dera uma boa grana para fazermos as pazes. Logicamente, ao olharmos o dinheiro, apertamos sorridentes, a mão um do outro. Aplausos e sorrisos eclodiram pela rua Hermann Weege. Nós, então amicíssimos, voltamos para casa, orgulhosos do tesouro conquistado.  

Soube, faz um tempo já, que Mela acabou por falecer. Fiquei triste com a notícia. Mela foi parte da nossa cidade. A memória de um lugar se faz continuamente de acordo com os personagens que nele habitam. Quem ali viveu certamente teve Mela em sua Biografia. Não só ele, mas sim uma Pomerode de gente fantástica, arcaica em tecnologia, idílica, mágica, recheada de encantos e histórias.

Viúvo

Todo ano, no verão, ele me aparece. Chega sem rodeios e na calada da noite. Sinto sua presença caliente em meu corpo. Um prurido nefasto me consome. Ao mesmo tempo que coça, quando encosto, dói. Não posso dizer que fico feliz com sua presença. Viúvo, como os íntimos o chamam, é penetrante, devasso, ardido. A dor que causa é larga e se atrela ao mover de minhas pálpebras.
Se ouso dançar, correr ou simplesmente me atrevo a fazer qualquer exercício físico, lateja-me a alma. A primeira vez que ele me encontrou, foi tão intenso que procurei um especialista. O Doutor me receitou um tal de Isopto Max. Max chegou destruindo tudo e, depois de uns dias, simplesmente acabou com o Viúvo. Foi, confesso, uma relação doentia. Eu fiquei só, sem o Viúvo que, sentindo-se diminuído pela presença do outro, sumiu. Max se esgotou com uma rapidez fora do comum. Tanto é que hoje não o busco mais na farmácia.
Viúvo supre o rol das minhas enfermidades anuais. Até pensei que, este ano devido ao isolamento social, ele nem apareceria. Ontem à noite, na cama, depois de arrumar a bagunça que eu e Gabriel fizemos na tentativa de montar um Gokart, senti a sua presença. Era madrugada quando tudo se intensificou e eu, em vão, tentei abrir o olho esquerdo. Ele estava dentro de mim a perfurar meu osso lacrimal. Com o tempo aprendi que este era o seu modo de cumprimentar-me.
A sensação de tê-lo junto a mim é como se a maçã do quadro Le fils de l’homme de Magritte não estivesse mais simplesmente na frente do meu rosto, mas sim, forçadamente, fosse colocada entre minhas pálpebras. Digo mais, é como se a maçã não fosse uma maçã e sim um abacaxi e é assim, meus amigos, que eu estou me sentindo.

Schlachtfest

Eu necessitava encontrar, o mais breve possível, um puxador interno para o meu Lupo. Como eu disse na última postagem, o ferro-velho mais próximo ficava a uma centena de quilômetros de minha casa.
Foi então que meu vizinho sabichão me contou sobre a extraordinária “Schlachtfest”. Ao ouvir tal palavra, meu cérebro começou a trabalhar com afinco. O que seria uma “Schlachtfest”? “Schlacht”, em alemão, significa batalha. Teria eu que duelar com alguém para conseguir o puxador? A Grande Alemanha não podia ser assim tão medieval. Além do mais, eu nem tinha uma armadura. Estaria em desvantagem. Poderia talvez entrar na luta com o manto sagrado do meu pai e que ele, com lágrimas nos olhos, me deu de presente na última visita: Uma camisa oficial do Flamengo da época do Zico. Mesmo assim eu seria massacrado.
Além do mais, como alguém pode festejar uma batalha? “Fest” vem de festividade. Que gente mais louca! Teria eu que ir armado? Sou completamente contra armas (tirando o canivete suíço). Na dita “Schlachtfest” viria o prefeito de Schlitz e entoaria ele um discurso emocionado relembrando as memoráveis batalhas da segunda maior cidade do Estado de Hessen?
Certamente seria servido, enquanto eu estivesse largado no chão a sangrar feito um mísero “Ausländer”, “Bratwurst” e cerveja preparada de acordo com a lei de pureza alemã (Reinheitsgebot) de 1516.
E a minha Simone? Meu Deus! Em meio a uma pandemia, ficaria ela viúva, com três filhos e um Lupo sem maçaneta. Provavelmente ela olharia o Lupo como Lívia olhou o Saveiro de Guma no clássico romance Mar Morto de Jorge Amado e depois o pilotaria como uma heroína.
Meu vizinho sabichão percebeu o pavor em meu rosto e começou a explicar-me o dito ou dita “Schlachtfest”…
Quando um automóvel não é aprovado na inspeção bianual, perde quase todo o valor. Vender o carro é ganhar uma ninharia. Sendo assim, o mais vantajoso é desmontá-lo e comercializar as peças individualmente. Muita gente faz isso. Procura na internet “Lupo Schlachtfest” que você acha rapidinho uma maçaneta (Türgriff). Não é que o sabichão estava certo?Vocês não imaginam o alívio que foi ouvir aquilo. Confesso que, por um momento, simpatizei com o gajo. Ele não só salvara minha vida, mas livrou Simone de uma viuvez precoce e o Lupo de ir para o ferro-velho.

Meio mecânico

Quando eu, ainda na Pequena Alemanha, tinha um problema com o auto, recorria aos serviços excelentes da Auto Elétrica Kuri ou da Tambosi Oficina Mecânica. Gente que faz da profissão uma obra de arte. Em meu deslumbre, sempre acreditei que, em Pomerode, trabalhavam os melhores profissionais do mundo, muitos dos quais, amigos meus. Naquele vale verdinho escondiam-se Michelangelos, Picassos, Raffaelos, Goethes, Humboldts. Cada um, o melhor em seu segmento. Meus grandes amigos, Keila e Aumir, viviam cercados de carros por todos os lados. Eles tinham, além do seu talento em consertar o impossível, um preço acessível para nós, orgulhosos representantes da classe média baixa pomerodense.
Na Grande Alemanha, os negócios são diferentes. Aqui também existem, logicamente, bons profissionais, o problema no entanto, é que a prestação de serviços por aqui é praticamente impagável.
Em conta do isolamento e da enorme distância que temos para com o mundo, afinal, vivemos nos confins de Schlitz, distantes quase quarenta quilômetros de uma quitanda, obriguei-me a comprar um segundo carro. Por favor, não me apedrejem ainda. Sei que é o consumo humano que consome o mundo, mas quando o inverno chega e os termômetros marcam dez graus negativos, tenho dificuldade em ir de bicicleta ao mercadinho, afinal é o equivalente a distância entre Pomerode e Gaspar.
Enfim, nós compramos (Simone está sempre junto. Na verdade ela é a protagonista de todo o negócio) um VW Lupo, para relembrar o primeiro carro que tivemos aqui na terra de Herta Müller.
Outro dia ao fechar, delicadamente, a porta, o pegador se partiu. Meu filho me olhou admirado. Para ele eu sou o Incrível Hulk um pouco gordinho e sem a detestável cor verde. E agora, o que eu iria fazer? Onde estaria o Aumir para me salvar de uma dessas? Se eu mandasse arrumar o pegador, certamente deixaria na oficina, para um trabalho de quinze minutos, doloridos trezentos euros!
É aí, meus queridos, que entra o famosíssimo e genuinamente europeu “faça você mesmo!” Aqui, pela necessidade, todos são meio engenheiros, pedreiros, mecânicos, padeiros, encanadores, montadores de móveis, enfim, prestadores de serviços gerais de si mesmos.
Eu estava decidido a consertar o Lupo sozinho e o primeiro passo era encontrar a peça perfeita. O ferro-velho mais próximo ficava a uma centena de quilômetros de minha casa. Foi então que descobri a magia de uma “Schlachtfest” (falo sobre isso na próxima postagem). Com a peça em mãos, fui para o YouTube pesquisar “VW Lupo Türkleidungen demontieren“.
Três horas de trabalho intenso. Eu ali montando, parafusando e utilizando mais uma infinidade de gerúndios. Quando descobri que o cara do “Schlachtfest” me vendeu o puxador direito em vez do esquerdo, soltei em alemão, a gama de palavrões que durante essa década e meia aqui vivendo, aprendi com outros estrangeiros.
Bom, mas para ser um pouco Raul, quem não tem colírio usa óculos escuros. Nada que um parafuso maior não resolva, pensei. Ledo engano. O parafuso pegou um fiozinho, daqueles que fazem o vidro da porta descer e subir. De repente, toda a parte interna da porta ruiu diante de meus olhos. Já não era mais o Hulk e sim o Pateta.Comecei a chorar de saudade da minha Pequena Alemanha e tudo o que eu tinha ali. Arrasado, me obriguei a levar o Lupo para um “KFZ Auto Service”.
Para o “Automechaniker” certificado, qualificado, experiente, foram trinta e dois minutos. Para mim, no entanto, foram quatrocentos e oitenta euros, além da frustração de não ter nascido nem para ser um meio mecânico.