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O dia em que experimentei ser mau

Estou sempre às avessas com aquilo que eu fui, com o que sou hoje e com as possibilidades não tão mais infinitas do meu vir-a-ser. É um processo quase natural de alguém, como eu, meio hippie, meio Waldorf. Ocupar-se com a sua própria biografia lhe confere a prerrogativa socrática do “conhece-te a ti mesmo”.
O problema é a enxurrada de histórias e personagens, esquecidos em algum lugar longínquo do seu corpo, que emergem com uma força, por vezes, aterrorizante. Durante a semana que passou, em minhas meditações e exercícios autobiográficos uma prodigiosa dupla reapareceu em minhas lembranças com intensidade fora do comum.
Cristiano e Edgar estudaram comigo na então sétima série. Eles moravam perto do cemitério municipal e, em minhas reminiscências, se ocupavam, basicamente, em fazer o mal para todo e qualquer ser vivo do planeta. Se faziam de bons meninos. Edgar tinha o cabelo bem penteado, usava camisa polo. Já Cristiano, em minha opinião, o mais perigoso, cabelos compridos e camiseta preta de banda. A dupla vivia à espreita, roubando bolas de gude das crianças pequenas, fazendo negócios escusos e tendo, logicamente, boas notas.
Eu preciso confessar que aquele universo fora dos padrões, atrevido e deveras maligno mexia comigo. De alguma forma eu queria ser um deles e, eis que com muito custo, consegui me aproximar. Para ser aceito, tive que vender minha BMX de rodas amarelas, um dos presentes mais legais da minha vida, por uns trocados. E assim me foi permitido judiar dos menores e mais fracos, roubar periquitos australianos, matar aula…
Eu vivia com eles, subia a ladeira até a casa de Edgar. Lembro-me da sua mãe, uma doceira fabulosa, do seu irmão pequeno, do seu pai, um mero representante do proletariado pomerodense. Nosso passatempo, enquanto arquitetávamos novos e diabólicos truques, era atirar com arco e flecha por entre os túmulos. Levávamos a guerra a um lugar de paz.
Eu curtia ora como protagonista, ora como carona, aquela onda malévola. As coisas começaram a sair dos trilhos quando, um dia, atrás do colégio, no estacionamento das bicicletas, pediram para eu bater num menino que estudava conosco. Eu, mesmo a tremer inteiro, o fiz. Quando seu nariz sangrou, Cristiano e Edgar gargalharam, e eu senti com intensidade aquilo que se entende por culpa. Na mesma semana os dois fizeram eu brigar com um bom amigo. Nos engalfinhamos no meio da rua como dois idiotas.
A gente sempre sabe quando está errado. Naquele dia, sem ter batido ou apanhado, aos prantos, eu pedi para mudar de sala. Infelizmente não me ouviram. Aos poucos me afastei e segui um curso próprio, mas posso dizer que o martírio da minha própria maldade durou em mim eternamente.

nariz_sangrando

Upsetters

Acordei cedo, fiz café para a grande família, cortei o pão, o queijo. Depois do desjejum com o pessoal, participei da reunião da comunidade, voltei ao lar, brinquei com o Gabriel e, quando sobrou um tempo, elaborei uma lista de necessidades para a Jawlensky (é o nome da nossa casa). Fim de tarde eu fui ter com um dos responsáveis pela parte financeira aqui da vila uma bela conversa que resultou na liberação da quantia solicitada. Saí de lá feliz. O tempo feio, com pequenos e ardidos floquinhos de neve fizeram eu apertar o passo em direção a minha casa. Depois do jantar, ajudei a colocar o Gabriel na cama, olhei o Thommy e os outros “meninos”, separei a medicação do pessoal para a semana inteira e, finalmente, tomei um chá…
Naquele momento minúsculo do meu dia lembrei-me da conversa “WhatsApp” que tive com o meu irmão na noite anterior…
Perguntei, sem muita expectativa, como tinha sido a Festa Pomerana, se ele encontrou alguém do passado, coisa e tal. Foi então que ele escreveu … “Eu vi um dos integrantes da Upsetters”. É engraçado quando nos deparamos novamente com algo que está implícito em nossa biografia. Não sei bem em qual dos meus corpos, físico, etérico ou astral, mas com meu chá e na penumbra do meu escritório eu viajei até aquela tarde em que vi a tal banda tocando nos fundos da casa de Carlos, na época conhecido por Lion.
Munido com uma Canon Av-1 – Speedlite 177A e uma lente olho de peixe, peguei a tarde livre na papelaria onde eu trabalhava de balconista e fui fotografá-los em um ensaio. A medida em que tocavam, o pequeno cômodo se incandescia, não pela florescente que estragava os melhores ângulos para as minhas fotos, mas pela irreverencia daquela trupe. As músicas, não me lembro de muita coisa, mas acabaram por me contagiar de alguma forma. As letras, em inglês, carregavam um belo potencial. Críticas, filosóficas e divertidas. Tudo isso com poucas mas bem pesquisadas palavras. É claro que estamos falando de garotos pertencentes a classe burguesa de uma cidade chamada Pomerode. Os seus gritos de subversão e suas necessidades eram muito diferentes de algum moleque pobre da periferia do mundo. Mas isso não lhes tirou a poesia e a beleza da sua arte. Eram irreverentes, de certa forma rudes, promíscuos e, sem dúvida nenhuma, muito inteligentes. Tanto é que, pasmem, eles sobrevivem até hoje.
Quando voltei para a papelaria eu pedi ao Alexandre, na época o dono da loja, para que ele revelasse as provas do material, afinal, ali funcionava também um estúdio fotográfico. Feito isso eu levei as tiras para eles que me presentearam com uma fita cassete. Lembro de passar horas escutando-os e admirando a capa daquele trabalho. Me sentia orgulhoso por eles terem escolhido as fotos e ainda por cima agradecerem a minúscula participação que tive naquela história.
Da banda em si eu me recordo do Carlos e do Júlio, que tocava alucinadamente bateria. Por sorte, tive a oportunidade de vê-los juntos e os tomei como referência em um trecho da minha vida. Não sei ao certo se Júlio era da Upsetters, mas os dois viviam grudados e ambos influenciaram de forma de forma indelével a geração anos noventa em Pomerode.
Eu jamais conversei realmente com aqueles sujeitos, somente o trivial, na maioria das vezes curtos diálogos de balcão. Pertencíamos a classes sociais distintas, mundos astrais paralelos. Não líamos os mesmos livros e é muito provável que se estourasse uma revolução naquele recorte de mundo, lutaríamos em lados opostos. Havia, no entanto, entre nós uma certa cordialidade, um respeito mútuo que é possível somente entre aqueles que, assim como eles, fazem arte e gente como eu, que existe para apreciá-la.

lente olho de peixe

Medo S.A.

Na verdade eu deveria escrever hoje sobre o novo modelo do Vinhetas. Tecer um agradecimento gigantesco ao meu irmão. Até tenho o texto, e, se fosse há uns três meses, muito bem caberia por aqui. No entanto, com a passagem do tempo, as leituras e releituras que fiz, me fizeram deixá-lo, pelo menos hoje, quietinho na pasta onde está.

A pauta do dia, pelo menos a minha, é sobre medo. Aprendi aqui na comunidade, principalmente com a minha excêntrica família e com o pessoal do horto, que a maioria dos nossos companheiros deixa escapar, ou melhor, manifesta declaradamente os seus medos mais esquisitos. Cristiano tem medo de perder o ônibus, apesar de, em trinta anos, isso nunca ter acontecido. Assim que chega no horto vai logo dizendo… “Dez para as cinco nós guardamos tudo e vamos embora!”. Cristiano trabalha pouco, pois está sempre ocupado em olhar o relógio. Acho que não passam trinta segundos sem que ele pare o que está fazendo para ver as horas. Imaginem o martírio que é vê-lo empurrar o carrinho de mão. A cada quatro passos, ele é “obrigado” a deixar o carrinho no chão, para poder saber a quantas anda o seu relógio. Depois da verificação, mais quatro passos, carro no chão, relógio e por aí vai. Franco tem pânico, pois crê não poder participar do passeio anual do horto. Isso também, em vinte anos, nunca aconteceu. Ele foi em todos, mas a sua vida é regida pela afirmação… “Amanhã tem passeio. Amanhã tem passeio. Eu vou andar de ônibus. Amanhã tem passeio”. O senhor Sério é assombrado pela neve e pela possibilidade de ter que trabalhar ao ar livre embaixo de um frio intenso. “Assim que esfriar eu largo tudo e vou para a marcenaria. Lá pelo menos é quente, ouviram? Queeeeeente!”. Ele repete a tal frase infinitas vezes. Engraçado é que em casa (ele é meu vizinho), diante das temíveis temperaturas negativas não há quem o faça ficar dentro de um cômodo aquecido. Está sempre com uma pá a tirar a neve da calçada.

Logicamente eu também tenho meus medos. Centenas, milhares, milhões. É claro que não fico abrindo, aquilo que me assombra, com os outros. A maioria de nós, vocês bem sabem, tenta esconder seus monstros. Acho que tudo começou, pelo menos foi até onde eu cheguei em meu trabalho biográfico, com os cochilos vespertinos de minha mãe. Eu era pequeno e ativo. Ela queria dormir. Eu queria brincar. Ela era autoridade e falava a verdade. Além disso, o medo é um grande incentivador do silêncio.

Bom, para que eu não incomodasse, ela me contava histórias sobre os mais variados bichos. Havia o bicho da chuva, o bicho do sol, o bicho das nuvens, do vento e de qualquer outro elemento da natureza, além do bicho da tarde que perambulava pela casa deixando-me como única opção, ficar ali, imóvel e sem fazer barulho, até ela acordar. Depois das quatro, ela despertava e os tais monstros evaporavam-se deixando-me, de certa forma, livre. Na verdade creio que eles nunca foram embora realmente, assim como se fazem presentes na vida de Cristiano, Franco, do senhor Sério e de qualquer outro ser humano.

monstros

(E)levação

É engraçado descobrir em si talentos pouco evidentes. Nada como ser estrela no futebol, vôlei, boliche, xadrez, bilhar. Muito menos ter uma aptidão intelectual fora do comum ou exibir façanhas extraordinárias com algum instrumento musical.

Falo de coisas cotidianas que estão em você, em mim, que passam despercebidas, em muitos casos, uma vida inteira, mas que são fundamentais para a construção do mundo.
Eu, por exemplo, percebi que tenho aptidão em levar, esperar e buscar pessoas. Simples, não é verdade?

Começou com o meu irmão Anderson. Minha mãe me incumbiu de levá-lo ao jardim de infância, distante cerca de dois quilômetros da nossa casa. Eu achava bonito o caminho, os pastos, as casas em estilo enxaimel, a entrada do zoológico e, é claro, aquele pequeno ser branquinho, sardento, com gordas bochechas vermelhas, que falava sem parar e me enchia o saco. Até hoje sou um apaixonado por ele e não passa um único dia de minha vida que não o tenho em pensamento.

Em Florianópolis, quando Simone assumiu a coordenação de uma escola na Lagoa da Conceição, eu mesmo me ofereci para fazer o serviço de (e)levação.

Aqui na comunidade aos poucos fui oferecendo préstimos como (e)levar os voluntários estrangeiros para o curso de alemão, fulano para equitação, beltrano para natação, yoga, pilates, sauna e assim por diante.  Por incrível que pareça, gosto muito desses pequenos compromissos assumidos.

Entre o levar nutrido pelas expectativas e o buscar quase sempre cheio de novidades, o esperar como algo contemplativo, na maior parte das vezes regido também pela solidão, é o que me encanta.

Sinto como hoje o ato de sentar no banco da escola e pelos longos minutos que antecediam o término da aula contemplar árvores em balanço, pardais chilreando e disputando migalhas, crianças a correr e gritar. Quando os portões se abriam, muitas vezes eu me esticava em abraço para aquele garoto lindo de passos desengonçados.

Na espera de Simone, tantas e tantas vezes, permaneci no carro a admirar o bucolismo de um dos mais lindos cantos da Lagoa. Tempestades e zunidos eram entoados pelo vento sul. As tão distintas luas minguantes, crescentes, novas e cheias, apareciam e desapareciam.

Por aqui, esperar o término da equitação já significou ficar imerso em neve, com um frio de quase dez graus negativos. No meio da tremedeira e da fumigação oriunda do ato de respirar, senti a plenitude de ser abafado pelo gelo em forma de flocos. A espera não durou mais do que dez minutos. Longos, inebriantes, doloridos, fantásticos.

(E)levação é uma arte cotidiana. Um talento a ser explorado, um fazer o bem que nos recompensa através do encontro com o outro e que nos proporciona a descoberta de nós mesmos. Por isso, lhes peço: Sentem no carro, peguem na mão, utilizem o bagageiro da bicicleta e… (e)levem alguém para um lugar qualquer.

Saudades de um bom engarrafamento


Há quem diga que o carro de alguém é a extensão da sua casa. De fato percebemos isso, pois não conheço ser algum que tem um lar limpo, organizado e um automóvel imundo. As duas coisas andam juntas. Fora do território nacional, percebemos que nosso veículo torna-se também um pedaço do país em fomos criados e, principalmente, da nossa cultura. É uma bandeirinha do Brasil grudada na traseira, uma lata de Farinha Láctea que você pagou 10 euros em uma daquelas lojinhas de roubo legalizado (exportação) e eventualmente está a rolar no banco detrás. Mas o melhor e que não pode, sob hipótese alguma  faltar, é a música brasileira. Essa não tem como deixar de lado. Aqui me tornei eclético, QUASE tudo é válido. Vivo a cantar canções tolas que ouvia nas rádios em épocas que me via obrigado a dirigir em uma velocidade de no máximo dez quilômetros por hora. Aliás, outro dia (sem brincadeira) bateu a saudade de um trânsito caótico num calor infernal. Dos engarrafamentos diários enfrentados na ponte entre a ilha e o continente. Nada comparado com São Paulo, mas mesmo assim eu tinha meu quinhão de stress, podia chegar em casa e dizer com um mau humor dos diabos que o trânsito estava insuportável.

Agora nem sei mais o que é isso. Vivo no lugar de menor densidade demográfica da Alemanha e no maior bolsão de Floresta do País. Meu único medo é atropelar os veados que insistem em atravessar a rodovia.

Por sorte, precisei fazer um novo passaporte, pois a validade do meu está a expirar. Sendo assim tive que dirigir até o consulado brasileiro em Frankfurt. Cerca de duzentos quilômetros daqui. Depois de muito correr na autoestrada, deixei o mato e adentrei no concreto. De repente, para meu regozijo, um imenso congestionamento. O sonho tornara-se realidade. Quase duas horas com o carro parado em uma temperatura que ultrapassava os vinte e cinco graus. Eu, com as janelas abertas, vestindo camiseta regata e bermuda, ouvindo Alceu Valença, me senti no ninho a dois dias do carnaval.