Medo S.A.

Na verdade eu deveria escrever hoje sobre o novo modelo do Vinhetas. Tecer um agradecimento gigantesco ao meu irmão. Até tenho o texto, e, se fosse há uns três meses, muito bem caberia por aqui. No entanto, com a passagem do tempo, as leituras e releituras que fiz, me fizeram deixá-lo, pelo menos hoje, quietinho na pasta onde está.

A pauta do dia, pelo menos a minha, é sobre medo. Aprendi aqui na comunidade, principalmente com a minha excêntrica família e com o pessoal do horto, que a maioria dos nossos companheiros deixa escapar, ou melhor, manifesta declaradamente os seus medos mais esquisitos. Cristiano tem medo de perder o ônibus, apesar de, em trinta anos, isso nunca ter acontecido. Assim que chega no horto vai logo dizendo… “Dez para as cinco nós guardamos tudo e vamos embora!”. Cristiano trabalha pouco, pois está sempre ocupado em olhar o relógio. Acho que não passam trinta segundos sem que ele pare o que está fazendo para ver as horas. Imaginem o martírio que é vê-lo empurrar o carrinho de mão. A cada quatro passos, ele é “obrigado” a deixar o carrinho no chão, para poder saber a quantas anda o seu relógio. Depois da verificação, mais quatro passos, carro no chão, relógio e por aí vai. Franco tem pânico, pois crê não poder participar do passeio anual do horto. Isso também, em vinte anos, nunca aconteceu. Ele foi em todos, mas a sua vida é regida pela afirmação… “Amanhã tem passeio. Amanhã tem passeio. Eu vou andar de ônibus. Amanhã tem passeio”. O senhor Sério é assombrado pela neve e pela possibilidade de ter que trabalhar ao ar livre embaixo de um frio intenso. “Assim que esfriar eu largo tudo e vou para a marcenaria. Lá pelo menos é quente, ouviram? Queeeeeente!”. Ele repete a tal frase infinitas vezes. Engraçado é que em casa (ele é meu vizinho), diante das temíveis temperaturas negativas não há quem o faça ficar dentro de um cômodo aquecido. Está sempre com uma pá a tirar a neve da calçada.

Logicamente eu também tenho meus medos. Centenas, milhares, milhões. É claro que não fico abrindo, aquilo que me assombra, com os outros. A maioria de nós, vocês bem sabem, tenta esconder seus monstros. Acho que tudo começou, pelo menos foi até onde eu cheguei em meu trabalho biográfico, com os cochilos vespertinos de minha mãe. Eu era pequeno e ativo. Ela queria dormir. Eu queria brincar. Ela era autoridade e falava a verdade. Além disso, o medo é um grande incentivador do silêncio.

Bom, para que eu não incomodasse, ela me contava histórias sobre os mais variados bichos. Havia o bicho da chuva, o bicho do sol, o bicho das nuvens, do vento e de qualquer outro elemento da natureza, além do bicho da tarde que perambulava pela casa deixando-me como única opção, ficar ali, imóvel e sem fazer barulho, até ela acordar. Depois das quatro, ela despertava e os tais monstros evaporavam-se deixando-me, de certa forma, livre. Na verdade creio que eles nunca foram embora realmente, assim como se fazem presentes na vida de Cristiano, Franco, do senhor Sério e de qualquer outro ser humano.

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