Obrigado por eu te cuidar

Se eu contasse a história de cada um dos seres que estão aqui no círculo, certamente escreveria um livro de biografias quebradas. É claro que existem exceções; heróis anônimos. Vocês sabem, a vida é cheia deles.
Quando eu cheguei por aqui guardava em mim um forte desejo de isolar-me. Sonhava com a reclusão, a possibilidade da leitura ilimitada e consequentemente da escrita regrada. As coisas, porém, acontecem da forma como planejamos somente em casos excepcionais. Eu só preciso aceitar que comigo não é diferente.
Hoje é dia de conferencia temática noturna. Um senhor magro, calvo, meia barba, fígado transplantado e conhecimento fora do comum formula um discurso sobre cultura. Enquanto parte do grupo dorme a sala fica entupida de frases cheinhas de significado.
Com seis anos de Alemanha eu, ao prestar atenção no sujeito, pareço entender quase tudo o que ele fala. Um falso orgulho, outrora tímido, cresce dentro de mim. Na verdade eu apenas me aproprio das palavras. Infelizmente os contextos ainda escapam, como areia fina, pelos dedos da minha alma.
O vão que se estende para além dos nossos pés não contém flores. O assoalho reflete luzes amarelas, já sem a presença nefasta do mercúrio. A pergunta inicial; o primeiro motor a colocar tudo em movimento, não podia ser mais lógica: O que é cultura?
O que se seguiu foi uma avalanche incalculável de termos como corpo etérico, iniciação, sabedoria, força do pensamento, força vital, antigo Saturno e época hindu. A composição dos laços significantes em cada um dos casos levou-me a questionar realmente o que significa ser um enfermeiro da alma. Na verdade, essa é a tradução literal da nossa profissão.
No fim fomos movidos pelo pensamento de que o homem é em si ordenado a luz do seu espirito. Ideia essa tirada de algum livro de Rudolf Steiner. O legal de tudo foi pensar na família que eu cuido e perguntar se em algum momento do meu dia eu olhei algum morador nos olhos e agradeci o fato de eu poder contemplá-lo enquanto ser humano. Em conjunto descobrimos que ajudar cotidianamente o outro é na verdade um presente.

Henri Matisse, A Dança.
Henri Matisse, A Dança.