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Dementes e de mitos ou passaporte pomerodense

Irineu Voigtlander era uma espécie de Schiller da nossa cidade, quando não, muito mais lírico e profundo do que seu “irmão” de profissão. Ele nos tocava a alma e seu livro habitava as estantes de muitas casas da Pequena Alemanha. Dementes e de mitos era o nome da sua obra-prima. Autor selecionado da Editora da UFSC, uma das mais conceituadas universidades da América Latina. Tal livro era uma espécie de passaporte. Só quem o possuísse podia ser considerado cidadão da Pequena Alemanha. Conseguir um exemplar daquele suprassumo não era fácil. Não se podia comprar em livraria, assim como não se compra, em uma banca de revistas, por exemplo, uma nacionalidade. O livro Dementes e de mitos precisava ser conquistado, herdado, recebido com honrarias pelo Chefe de Estado-maior, na época, o excelentíssimo prefeito municipal Nelson Kickhoefel, vulgo Kika.
Assim como um alemão, para ser alemão, tem por obrigação ler Fausto; um espanhol Dom Quixote; um moçambicano Terra Sonâmbula; um francês O estrangeiro; um “pequeno alemaniense” para pertencer a Pequena Alemanha, tem por obrigação, ler Dementes e de mitos, a expressão máxima da nossa cultura.
Meu exemplar, esta relíquia, guardada no cofre da família, eu recebi das mãos do próprio autor. Eu freqüentava o ensino médio no período noturno no JB e durante o dia trabalhava na medição de terrenos e construções. Era uma forma de ganhar uns trocados para poder curtir o máximo da efervescência dançante de Pomerode: a lendária Jord’s Som (vou falar dela em uma outra postagem).
Eu não conhecia as letras, ou melhor, sabia escrever o meu nome e até gostava de ler uns gibis, mas um livro de poesias me era algo tão desconhecido quanto o profundo oceano de minha alma.
Eis que estava eu lá, num dia nublado, a medir o terreno daquele, no sentido literal, gigante senhor. Em cima do terreno havia uma casa, havia uma casa em cima do terreno. Nunca me esquecerei daquele acontecimento extraordinário. Eu, com a trena em mãos, a medir uma parede quando, de repente, um homenzarrão aparece.
– Bom dia. – Disse-me ele, com seus cabelos brancos, óculos e um cheiro de sabedoria tão poderoso que eu parecia estar na própria Biblioteca de Alexandria.
– Que fazes por aqui? – Continuou ele, com uma seriedade fora do comum.
O modo penetrante como ele entoou aquela interrogação mudou, confesso, a minha vida. Expliquei-lhe, gaguejando, sobre o levantamento topográfico da Prefeitura. Muitos soltavam-me (novamente um sentido literal) os cachorros. Irineu Voigtlander, não. Ele convidou-me para um café e, ao fim de meu primeiro diálogo genuinamente filosófico, cuja essência não entendi patavinas, granjeou-me com um exemplar autografado, em minha opinião, da mais opulenta obra da literatura mundial: o livro “Dementes e de mitos”. Afinal, como escreveu Irineu Voigtlander… “no mais deformado das paisagens, eu marquei minha única linha reta: a hora de não mais voltar.”

Os desfiles do dia sete

Os desfiles do dia sete de setembro na Pequena Alemanha, assim como a cuca de farofa de minha oma, permanecem, com um certo saudosismo, em minha memória.

No meu tempo, o Schroeder ainda tinha a fachada pintada de branco e somente uma pequena parcela do centro era calçada.

Ali, naquelas ruas de paralelepípedo, tendo de um lado, como fundo natural, o imponente Morro da Turquia e do outro a charmosa torre da igreja Luterana, estávamos nós a cumprir com o nobre dever cívico.

Éramos divididos em pelotões. Meninas de um lado, meninos do outro. Cada ano escolar pressupunha um grupo. Os alunos eram milimetricamente enfileirados, do menor ao maior. Todos a bater o pé, ao mesmo tempo, no chão! Professoras neuróticas a nos puxar e a gesticular como se estivessem a ter um ataque histérico. Tudo tinha que ser perfeito em nosso louvor a pátria mãe, inclusive o uniforme escolar. Se uma das professoras pegasse algum aluno com uma camiseta mal passada, amarelada ou com alguma mancha, era, por nossas educadoras, sumariamente condenado, sem direito a defesa.

O ápice do desfile, o destino final, o sentido de tudo aquilo era, sem dúvida, a tribuna de honra, onde ficava o prefeito, a primeira-dama, representantes do clero e, lógico, da burguesia pomerodense.

Dizem as más-línguas que, se ali ocorresse alguma falha, se alguma criança fizesse uma bobeira e o Prefeito se levantasse e apontasse o polegar para baixo, o indivíduo e sua família, após o desfile, desapareciam sem deixar vestígios.

Lembro-me ainda do prefeito Kika, sua túnica branca, toga vermelha e coroa de louros a nos observar criticamente. Ah, quando medo sentíamos ao passar pela tribuna.

O compasso dos nossos desfiles não era dado apenas pela batida dos Bambas e Congas no chão. A fanfarra do colégio com suas caixas, surdos, bumbos, pratos e trombetas soavam ao longe e ritmavam a nossa idolatria a pátria amada.

O verde e o amarelo estavam por todos os lados. O Hino da independência era entoado a plenos pulmões. Morávamos em Pomerode, mas ali, naquela faísca de tempo, éramos brasileiríssimos. Na verdade nosso ufanismo durava até entrarmos em nossos automóveis, muitos deles a ostentar em suas traseiras, pequenos adesivos azuis, com a pérfida frase “O Sul é o meu país”, base sagrada de nossa hipocrisia.

Mela – A lenda

De todas as figuras históricas da nossa Pequena Alemanha, o Mela é, talvez, a mais enigmática de todas. Perambulava pela vastidão do centro com um triciclo adaptado. Tal veículo era impulsionado pela força dos seus braços, pois Mela tinha paralisia nas pernas.
Quando nossa trupe se encontrava, depois da aula, no prédio do extinto BESC – Banco do Estado de Santa Catarina, era comum tê-lo como tema principal de nossos causos. Ouvíamos sempre dizer que o Mela era milionário e morava em uma mansão completamente automatizada, tipo Jetsons. Ele pedalava o seu triciclo até o banheiro onde havia um enorme lava jato. Mela entrava sujo e malcheiroso da fuligem dos automóveis que circulavam pela Cidade mais alemã do Brasil e saía brilhando, cheiroso, seco e dez anos mais jovem. Fábio tinha a teoria de que Mela vivia na floresta e era cuidado por ninfas. Assim que chegava em casa, banhavam-no com água-de-colônia, cozinhavam as mais caras iguarias e dançavam nuas ao seu redor, como aquelas mulheres do quadro de Matisse.

Lembro que o ponto principal de coleta do Mela era em frente ao Zoológico. Ali, uma vez, nos estranhamos. Foi a primeira e única vez que nosso querido Mela se dirigiu a minha pessoa. Eu era menino ainda e ganhava uns trocados vendendo picolé. Oitenta por cento da quantia que eu comercializava era comprada pela minha mãe, o resto eu vendia naquele que era considerado o melhor ponto da cidade. Eis que eu estava a conquistar o dinheiro para a compra de um Mega Drive, quando ele veio com o triciclo e quase me atropelou. Aquele era o seu território e eu havia cometido um enorme erro. Ele veio, com dedo em riste, para cima de mim. Eu me esquivei, larguei a bicicleta, caíram os picolés. Turistas se aglomeram para ver o embate que no fim, nos rendeu bons trocados. Um grupo de paulistas nos dera uma boa grana para fazermos as pazes. Logicamente, ao olharmos o dinheiro, apertamos sorridentes, a mão um do outro. Aplausos e sorrisos eclodiram pela rua Hermann Weege. Nós, então amicíssimos, voltamos para casa, orgulhosos do tesouro conquistado.  

Soube, faz um tempo já, que Mela acabou por falecer. Fiquei triste com a notícia. Mela foi parte da nossa cidade. A memória de um lugar se faz continuamente de acordo com os personagens que nele habitam. Quem ali viveu certamente teve Mela em sua Biografia. Não só ele, mas sim uma Pomerode de gente fantástica, arcaica em tecnologia, idílica, mágica, recheada de encantos e histórias.