Meias de incompreensão elástica

Eu tolero quase tudo nessa profissão que escolhi. Não tenho problemas em fazer curativos, tratar uma escara de decúbito, limpar amarronzados popôs e tantas outras coisas que acabam com uma refeição.  A única coisa, no entanto, que me aterroriza é uma meia de compressão elástica.
Na verdade é um grande trauma. Nas últimas férias em grupo recebi de presente um Juergen para cuidar.

O diagnóstico mais parecia uma tese de doutorado. Sujeito não falava, os movimentos dos membros inferiores eram poucos, tinha problemas de aspiração pulmonar. Tudo dentro do meu âmbito de trabalho. O único detalhe eram as “meias especiais” que o sujeito deveria vestir. O enfermeiro que cuidava dele anteriormente, quando me entregou o pacote, perguntou se eu queria uma ajuda. Eu, em meu orgulho de profissional quase formado, recusei gentilmente a proposta. Ainda brinquei dizendo que minha mãe usava meias Kendall desde pequenina. Diante da minha tentativa frustrada de ser engraçado, o homem arregalou os olhos, comprimiu os lábios, franziu a testa e sumiu.

Eis que horas depois, ajoelhado diante do ser de cuecas, iniciei o procedimento de colocação da meia. Milímetro por milímetro fui ganhando terreno. Com rápidos e precisos puxões cheguei até a metade do pé. Pouco a pouco o negócio foi se comprimindo. Pequenas dobras sobrepostas se fortificaram até que o tecido, esticado ao máximo, já não dava margem para qualquer movimento.

Era verão. Estava quente e abafado. Juergen estava inquieto. Gotas de suor escorriam pelo meu rosto e pingos salgados dissolviam-se naquela meia do terror.

Faltavam míseros dois centímetros até o calcanhar. Vocês sabem que no processo de colocação de uma meia, o calcanhar é o portal da vitória, a última barreira ser vencida. Fazia vinte minutos que eu estava ali com tudo estagnado. Meus joelhos doíam, meu corpo estava molhado, provavelmente e vergonhosamente meu cofrinho estava a aparecer. Com as mãos trêmulas eu tentava, porém, nada mais se movia.

Eu quis desistir, começar do zero, puxar aquele maldito pedaço de tecido feito provavelmente com fios de adamantium, o mesmo material que constitui o esqueleto do Wolverine. O problema é que a meia já estava tão encravada que seria impossível arrancá-la.

O homem tremia, eu tremia. No momento em questão eu queria que a Terra tremesse também. Pensei em pegar uma faca ou uma serra de cortar cano. Quem sabe pedir ajuda para os bombeiros, cruz vermelha, algum halterofilista… Os dedos de Juergen já estavam azuis. Logo, logo o negócio iria complicar… Exército, padres, Nasa… Eu seria a chacota profissional do século. Desesperado, eu olhava para o coitado do Juergen e perguntava o nome e o número de telefone do enfermeiro. Tentei língua de sinais, pedi para que ele piscasse o olho se eu falasse o número correto, mas nada adiantou. Diante dos dedos roxos e da meia entalada, eu corri, com lágrimas nos olhos,  até a caixa de ferramentas e saquei um alicate. Com o coração saltando, belisquei uma microscópica parte do tecido e com uma força de Hércules desentranhei aquele corpo estranho.

Pode parecer história de ficção, mas no momento em que eu caí de bunda no chão, o enfermeiro entrou com a porcaria de uma armação de ferro na mão e, ignorando a cena dantesca, expressou-se naturalmente:

Ah, vocês ainda estão aí… Acabei por esquecer o suporte para a colocação da meia. Sem ele, meu amigo, não há Cristo que faça essa meia entrar!!!