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Crime político

1998… Estudante de Filosofia, sem dinheiro, revoltado, patético e querendo descolar alguma coisa dos pais. O jeito mais fácil de conseguir a passagem para casa era ir até a assembleia legislativa e pedir para um deputado, o senhor G., eleito pela nossa região.
Naquele dia, como sempre, veio o R., parente político, cargo comissionado. Correntes de ouro por todo lado, camisa social folgada, uma testa gigante, os dentes da frente separados (diastema), cavanhaque ralo. Olhou para mim e o bando de pedintes sentados na fila de espera e disse enfático:
– Entra!
Ali naquela sala, com a porta aberta, o papo de sempre:
– Fala campeão, e o avô, tá bem?
– Porra bixo, tô acabado, saí da zona lá pelas tantas. Hoje vou de novo. Aquela perto de Pomerode. O foda é que tu não tem grana, senão te levava.
– Tu viu os sem terra aqui hoje? Essa raça fode com o nosso banheiro, deixam tudo sujo!
Depois das palavras dignas do lugar, sacou uma Playboy e a contemplou com grunhidos característicos. No fim, olhou para mim e mandou:
– Porra, senta ali do lado e dá uma olhada na revista, que daqui a pouco busco o papel para tu pegar a passagem na agência de turismo do deputado.
A próxima a entrar era uma mulher. Lembro bem dela. Uma senhora com casaco de tricô azul, provavelmente feito a próprio punho, saia abaixo do joelho, meia calça grossa, sapatos velhos, mãos rachadas. Seu filho estava a ser operado em Lages e ela implorou uma passagem. Queria vê-lo, precisava cuidar do neto, chorou até soluçar. Eu folheava a revista. R. Balançou a cabeça negativamente. A verba do dia tinha acabado. Eu folheava a revista. Não era comigo. A mulher saiu em prantos. Perguntava a si mesma o que iria fazer. Depois dela entrou Eduardo, amigo fanfarrão, contamos piadas, ganhou a viagem, tirou a revista da minha mão. R. Combinou:
– Então, vamos tomar cerveja? Hoje é sexta, eu pago!
Ele fechou a porta, olhou as pessoas com aqueles olhos humilhados, menosprezou-as um pouco mais e saímos os três contentes da vida a entortar o caneco. Depois das oito, fui a rodoviária e parti para casa com minha gratuita passagem. Sem peso na consciência.

Aartamentos & domingos (Peterson Quadros)

Moro em apartamento. Lugar pequeno, apenas um quarto, mas muito bem localizado. Vista para os fundos do morro da Lagoa e para o bairro do Itacorubi. Na sala e cozinha bate o sol da manhã, durante a tarde é no quarto. Dá até para deixar os travesseiros na janela. Gosto do cheiro e do leve calor que emanam perto das seis. Em dias de outono é a melhor coisa que há. Principalmente se é domingo e tem bolo no café da tarde.