Urna eletrônica

Hoje eu acordei cedo e, dentro das minhas possibilidades, me fiz bonito. Simone estava com Gabriel no colo. Os dois exauriam uma beleza única, dessas que só os apaixonados enxergam. Sei que tudo parece clichê, mas foi isso que senti e foi assim que nós partimos. O termômetro do carro marcava 6,5 graus centígrados. O nariz do Gabriel escorria. Uma neblina densa cobria o vale e escondia as curvas da estrada vazia.
Eram dez e cinco quando chegamos em Frankfurt. Estacionei perto de um centro ginasial, em frente a uma estátua de Goethe. O nariz do nobre escritor estava pintado de vermelho. Esqueci de tirar uma foto. Gabriel espirrava sem parar. Decidimos que, primeiramente, eu ficaria no carro cuidando dele, enquanto Simone iria até o consulado votar. Em menos de dez minutos ela estava de volta.
Apurado para ir ao banheiro, apertei o passo, dobrei uma esquina, atravessei a dita Hansaallee e cheguei no prédio vermelho. Havia um certo movimento na rua. Incomum para uma Alemanha que, aos domingos, gosta de acordar tarde. Obviamente, não eram alemães, mas sim brasileiros que estavam prestes a exercer uma das suas conquistas máximas: o voto! Pelo menos foi isso que aprendemos na escola com os sobreviventes da ditadura.
A fila para o toalete deixou-me apreensivo. Fiquei a contemplar a máquina de distribuição de senhas. Botões gastos. Fita adesiva amarelada fixando explicações bilíngues. Ao meu lado uma senhora brasileira, no consulado geral do Brasil, no dia da eleição presidencial, portando cédula de identidade brasileira, falava em alemão com funcionários consulares. Finalmente a porta se abriu e eu, naquele lugar vazio, pude urinar em paz.
Cerca de cinco litros mais leve, depois de lavar as mãos (é sempre bom deixar claro), peguei o título de eleitor, a carteira de identidade e me encaminhei para a seção eleitoral onde constava o meu nome. Assinei o termo de presença e, depois da autorização e alguns passos, eu me deparei com a dita urna eletrônica.
Os números, o botão verde, aquela lista de candidatos e candidatas pendurada, a minha mão esquerda. De repente o ano de 2002 me voltou com uma intensidade fora do comum. Estudante de Filosofia, barbudo, idealista e, sobretudo, petista. Que campanha impossível foi aquela que levou o nosso querido Lula ao poder. Quantas tardes frias e chuvosas fazendo panfletagem. Batendo de porta em porta, sendo ofendido, fugindo de cachorros. Tudo muito difícil, mas ao mesmo tempo, instigante. Estávamos tomados por uma euforia tão poderosa, nossos corações, pelo menos o meu, batia tão aceleradamente, que não sei como não enfartei naquelas andanças pela ilha.
Pelas manhãs eu pegava o material no diretório do PT que ficava no primeiro andar de um prédio velho, na esquina com a Felipe Schmidt. Eu tinha uma boina de colono do meu avô que eu virava para trás e grudava um daqueles bótons em formato de estrela com a sigla do Partido dos Trabalhadores. Com os panfletos em mãos eu partia para militância. Eis que no dia 27 de outubro quando, na Lagoa da Conceição, eu ouvi a consagração de Lula, senti verdadeiramente que tinha feito parte de uma revolução.
Desde então, enquanto eu amadurecia, percebia os contextos e deixava de acreditar na “revolução”, o PT crescia, fazia política, se aprimorava. Apesar de alguns percalços eu acredito sim que muita coisa boa foi feita. Confesso que, houve momentos, nessas eleições, em que eu balancei pelo Eduardo Jorge, um sujeito simpático e com excelentes ideias, mas confesso que ali, diante daquela urna eletrônica, não consegui deixar aquele que considero o meu partido. Quando confirmei e ouvi aquele sinal monofônico, eu fui tomado por uma sensação de bem-estar que há tempo não sentia.
Com leves e saltitantes passos, caminhei até o carro, peguei a minha família e, juntos, voltamos para o mato.

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