Quando a minha fé encontrou Kant

Faz um mês que o açúcar refinado deixou a minha vida e, tal como a dor insuportável de um amor não correspondido, eu chorei. Sentado em um vaso sanitário, trancado em um minúsculo toalete, com o mundo lá fora a girar, gritar e a se contorcer, meus soluços abafados permaneceram entre sóbrias quatro paredes.
Sem o açúcar e aos prantos naquele espaço sem janelas terminei de ler, pela segunda vez, a metamorfose de Kafka. Ao contrário da apreciação que fiz do tal livro na adolescência, o drama vivido pela família de Gregor me foi indiferente.
Um punho nervoso me obrigou a voltar a realidade. Fiz, com muita pressa, aquilo que eu tinha que fazer. Puxei a descarga, lavei e desinfetei as mãos com álcool e parti. Acabei em um amplo supermercado que se abria diante dos meus pés em corredores entupidos de mercadorias.
Catei, juntei, recolhi, somei tudo em um carrinho de compras. Pouco antes de chegar ao caixa prateleiras infindáveis ofereciam-me balas, chocolates, biscoitos. Um aperto fulminante dominou meu coração. Não sabia se era infarto ou tentação luciférica. Lembrei-me do final de 2016 quando eu era capaz de, sem culpa, devorar dez barrinhas de chocolate de uma só vez. Uma hora ou outra eu teria que superar o desejo. Puxei o ar e tive fé, afinal ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Lentamente vi os biscoitos recheados ficarem para trás, os gofres belgas, as balas de goma, os pacotes gigantes de Haribo, os chocolates branco, ao leite, meio amargo… Tudo passou e quando, ainda mais forte, olhei para trás, a minha fé encontrou Kant, afinal eu apenas sou livre quando não faço aquilo que eu muito quero.

doces_supermercado