Tenho por hábito levantar cedo. Normalmente desço da cama lá pelas cinco, antes das crianças acordarem e da casa Jawlensky despertar em sua histeria generalizada. Estamos há trinta e três dias confinados em nossa paradisíaca comunidade. Somos um grupo de altíssimo risco. Se o tal vírus entra a grande maioria dos nossos moradores morre. O médico da comunidade sabe, eu sei, as autoridades sabem, eles no entanto, não. Alguns até intuem, outros, por falta de entendimento, acham que a vida segue normal, pois esta pequena montanha mágica chamada Morro dos pássaros, para eles, é o universo em sua totalidade.
O nosso grande desafio, no momento, é transmitir (palavrinha de grande significância nas últimas semanas.) segurança e tranquilidade aqueles que adotamos como família. Por sorte, grande parte daquilo que consumimos, é produzido por nós mesmos. O restante nos chega até a porta de casa. Nosso mercadinho fechou-se para consumidores externos e tenta suprir as necessidades internas apenas.
Mesmo assim, eu me obrigo a sair daqui duas vezes por semana. Nas quintas, ainda de madrugada, blindado com máscara, luvas, álcool em gel e um monte de papeizinhos, vou para a cidade, em um supermercado de verdade, comprar artigos de primeira necessidade para nossos moradores. Os pedidos basicamente se resumem a chocolate e refrigerante. No começo, confesso, relutei um pouco, mas no andar da carruagem, percebo o poder tranquilizador do açúcar em minha excêntrica família. Pelo menos tento ministrar tudo homeopaticamente.
“Açúcar? Sê tá louco meu!” diria algum incauto direitista defensor do Bolso. “Antes a doçura de um chocolate do que o gosto cadavérico da cloroquina” argumentaria eu.
Minha segunda saída acontece aos domingos. Vou a padaria comprar pão francês para o brunch. Como sou cliente de longa data da Guter Gerlach, sempre o primeiro a chegar, hoje a mulher me ofereceu um Capuccino to go, cortesia da casa. Dirigi até perto do rio Fulda, estacionei e ali fiquei longos minutos. Resolvi dar uma olhadela no celular. De repente, ao rolar a Timeline do Facebook, no mesmo instante em que dou o primeiro trago no café, me aparece a foto do novo ministro da saúde. O líquido flamejante me implodiu a boca e desceu pelo esôfago como se fossem caquinhos de vidro a cortar-me as mucosas. Para piorar a sensação de morte, promovida pela imagem do excelentíssimo senhor Teich, engasguei-me. Uma mistura de soluço e tosse fez aquele fluido ainda em ebulição misturado ao suco gástrico subir e agir de forma ácida em minhas narinas. Me faltou ar. Sôfrego, abri a porta do automóvel e caí de joelhos no asfalto molhado a lutar pela vida.
Após intermináveis minutos, encharcado, com a boca dormente, puto da cara, consegui me recompor e, ao voltar para casa, fiquei a pensar no dito ministro e sua monstruosa capacidade.