O celular desgraçou a minha vida

Acho fabuloso o verbo desgraçar. Embora seja sempre utilizado de forma trágica, a palavra, tal como é comumente empregada, guarda em si, pelo menos para mim, algo cômico.
Depoimentos como: a cachaça, ou, aquela mulher, ou, aquele homem, desgraçou a minha vida são comuns nos noticiários. Também uma caneta ao vazar na camisa antes da entrevista de emprego, uma pizza quentinha e deliciosa ao cair no chão sujo da sala, um vinho ao manchar um caríssimo vestido…Tudo pode desgraçar vida de alguém.
Bom, se eu pudesse escolher algo que tenha desgraçado a minha vida, eu diria que, no meu caso, foi o celular.
Celular é uma tornozeleira eletrônica. Vibra a toda hora… O dia inteirinho, mensagens do tipo: Onde você está? O que estás a fazer? Podes vir aqui um minuto? Já está terminando? Já chegou? Tudo bem? Por que você não responde? Responde! E assim é durante os 86.400 segundos que compõem o meu dia. São centenas de milhares de mensagens. Malditos banners a infestar a tela do celular, tal como uma praga de gafanhotos a devorar uma safra inteirinha.
O tempo agora é milimetricamente cronometrado (que combinação de palavras!). São quarenta e cinco minutos para ir da minha casa até o supermercado e voltar. Se demoro quarenta e seis minutos, o bicho vibra sem parar, solta seus banners de terror psicológico tal como uma metralhadora: Já chegou? Quanto tempo falta? Você está demorando! Bom, se escapo ao protocolo e entro em dúvida entre Brócolis ou couve-flor, já era.
Eu tento justificar o atraso tirando fotos comprobatórias do ato, ou pior, excedendo o limite de velocidade na volta para casa.

Infelizmente os pardais e as lombadas eletrônicas não perdoam. Estão ali justamente para agir impiedosamente sobre o nosso medo.
Quando, ao dirigir, na impossibilidade de responder um WhatsApp por risco de morte, você pensa que acabou, um velho método entra em ação: o telefonema.
Logicamente os carros modernos foram projetados para que aparentemente não haja escapatória. A porcaria do Bluetooth faz uma interconexão entre o telemóvel e os alto-falantes, além do mais, um maldito botãozinho acoplado ao volante não deixa margem para desculpas.
Quando tudo parece perdido, quando aquele wrrrft, wrrrrft, wrrrrft entra na corrente sanguínea e te deixa suando frio, tirando a sua concentração em uma estrada infestada de motoristas inconsequentes, pedestres imprudentes, semáforos, cruzamentos, ciclistas, você estica a sua mão direita trêmula e encharcada, tendo nela a única esperança de sobrevivência… O aparelho reconhece a sua digital e wrrrrft, wrrrrft, wrrrft você se encontra com Santos Dumont, agradece em oração a sua brilhante invenção e aperta de vez o milagroso botão da paz…