Eu e os livros cheios de coisas

Tem uma cena no filme a Cidade de Deus que eu acho fantástica. João Pequeno e seus comparsas estão em um cômodo imundo a procurar artigos sobre eles mesmos nos periódicos da cidade. Um deles no canto folheia atentamente o jornal. De repente João Pequeno pergunta se ele sabe ler. O rapaz então responde “eu só sei ler as figuras”.
Quando, morando aqui na Alemanha assisti ao filme, minha identificação com a tal cena foi direta e indiscutivelmente profunda.
Triste, em um sofá precariamente iluminado, desnutrido da capacidade de compreender uma só palavra do vasto mundo tipográfico alemão eu contemplava horas seguidas as figuras contidas no “Schlitzer Bote” e tentava, a partir delas, montar um panorama do mundo.
A minha própria incapacidade gerava em mim um certo desconforto, uma vergonha inata. Eu, no entanto, era ambicioso, queria ler livros e não jornais. Em vão procurei pelas ruas da cidade de Fulda livros que eu pudesse entender.
Eis que em uma ensolarada tarde de outono adentrei em uma minúscula livraria. Meus olhos percorreram prateleiras, analisaram cestos, curtiram preços. Na esquina entre “Krimi” e ” Fitness” um título incomum “Wimmelbücher”. Tal como um cowboy saca o seu revolver, rapidamente tirei do bolso meu minidicionário e verifiquei o significado de tal palavra. “Livros cheios de coisas”. Que enigma a ser decifrado…Estiquei o braço, puxei um exemplar para ver o que havia dentro, e, assim o encanto se fez.
Tantos elementos e histórias a serem curtidas sem a necessidade de uma só palavra. A possibilidade por viajar em paisagens mundanas, a celebração dos detalhes, o cultivo da atenção…
Rotraut Susanne Berner e os seus livros sobre as estações tornaram-se para mim um refúgio transcendente a materialização da filosofia em que patino sem sair do lugar.
Tem vezes que sou obrigado a parar o meu mundo e passar horas a “ler” e “reler” aqueles livros cheinhos de coisas.

rotkraut susanne berner