A morte

Eu sigo a limpar e organizar o porão. As minhas últimas madrugadas aconteceram na área de serviço. Tenho a impressão que retirei uma tonelada de pó daquele lugar. Enfim, com muito trabalho, as coisas estão mais claras por lá. Quinta-feira, durante o sagrado café da manhã, tocou o telefone. Uma voz sóbria anunciou a visita repentina, em nossa comunidade, da senhora morte.
O encontro aconteceu na casa Novalis e teve como atriz coadjuvante a nossa querida Manne, uma senhorinha de pouco mais de oitenta. Acordou, levantou, caiu e ali mesmo nos deixou.
Eu a conhecia dos grupos de férias.
Não tinha um diagnóstico preciso. Proferia, sem papas na língua, as suas verdades. Operou o joelho, sobreviveu a um câncer de mama, gostava de acordar cedo e desfazer a roupa de cama. Fazia uma trouxa, colocava-a na lareira e esperava algum incauto acender o fogo.
A única aventura que vivemos juntos foi uma ida ao supermercado. Enquanto eu comprava as coisas para o grupo, ela agarrou um rolo papel de presente e não soltou mais. Era o último exemplar. A operadora do caixa gesticulava e pedia a mercadoria para então escanear o código de barras. Manne, com seu chapéu chique, cabelos brancos, elegância e uma força descomunal, apertava o tal papel de presente e dizia com cara amarrada “é meu! É meu! Não vou dar!” Tentei, infrutiferamente, negociar. As pessoas atrás de nós começaram a reclamar, logicamente, em alemão. Ouvir insultos na língua de Goethe é o mesmo que estar diante de alguém com uma potente britadeira ligada na máxima capacidade. Eu estava, internamente, desesperado. Se eu ousasse encostar em nossa Manne o escândalo seria maior. Supliquei pelo gerente. A operadora chamou-o pelo telefone. Quando o homem chegou, analisou a situação, sorriu e presenteou-nos com o papel. Manne, austera, agradeceu, reafirmou “é meu!”, ajeitou o chapéu, enganchou-se no meu braço e pediu para ir embora.

manne