Viúvo

Todo ano, no verão, ele me aparece. Chega sem rodeios e na calada da noite. Sinto sua presença caliente em meu corpo. Um prurido nefasto me consome. Ao mesmo tempo que coça, quando encosto, dói. Não posso dizer que fico feliz com sua presença. Viúvo, como os íntimos o chamam, é penetrante, devasso, ardido. A dor que causa é larga e se atrela ao mover de minhas pálpebras.
Se ouso dançar, correr ou simplesmente me atrevo a fazer qualquer exercício físico, lateja-me a alma. A primeira vez que ele me encontrou, foi tão intenso que procurei um especialista. O Doutor me receitou um tal de Isopto Max. Max chegou destruindo tudo e, depois de uns dias, simplesmente acabou com o Viúvo. Foi, confesso, uma relação doentia. Eu fiquei só, sem o Viúvo que, sentindo-se diminuído pela presença do outro, sumiu. Max se esgotou com uma rapidez fora do comum. Tanto é que hoje não o busco mais na farmácia.
Viúvo supre o rol das minhas enfermidades anuais. Até pensei que, este ano devido ao isolamento social, ele nem apareceria. Ontem à noite, na cama, depois de arrumar a bagunça que eu e Gabriel fizemos na tentativa de montar um Gokart, senti a sua presença. Era madrugada quando tudo se intensificou e eu, em vão, tentei abrir o olho esquerdo. Ele estava dentro de mim a perfurar meu osso lacrimal. Com o tempo aprendi que este era o seu modo de cumprimentar-me.
A sensação de tê-lo junto a mim é como se a maçã do quadro Le fils de l’homme de Magritte não estivesse mais simplesmente na frente do meu rosto, mas sim, forçadamente, fosse colocada entre minhas pálpebras. Digo mais, é como se a maçã não fosse uma maçã e sim um abacaxi e é assim, meus amigos, que eu estou me sentindo.