Upsetters

Acordei cedo, fiz café para a grande família, cortei o pão, o queijo. Depois do desjejum com o pessoal, participei da reunião da comunidade, voltei ao lar, brinquei com o Gabriel e, quando sobrou um tempo, elaborei uma lista de necessidades para a Jawlensky (é o nome da nossa casa). Fim de tarde eu fui ter com um dos responsáveis pela parte financeira aqui da vila uma bela conversa que resultou na liberação da quantia solicitada. Saí de lá feliz. O tempo feio, com pequenos e ardidos floquinhos de neve fizeram eu apertar o passo em direção a minha casa. Depois do jantar, ajudei a colocar o Gabriel na cama, olhei o Thommy e os outros “meninos”, separei a medicação do pessoal para a semana inteira e, finalmente, tomei um chá…
Naquele momento minúsculo do meu dia lembrei-me da conversa “WhatsApp” que tive com o meu irmão na noite anterior…
Perguntei, sem muita expectativa, como tinha sido a Festa Pomerana, se ele encontrou alguém do passado, coisa e tal. Foi então que ele escreveu … “Eu vi um dos integrantes da Upsetters”. É engraçado quando nos deparamos novamente com algo que está implícito em nossa biografia. Não sei bem em qual dos meus corpos, físico, etérico ou astral, mas com meu chá e na penumbra do meu escritório eu viajei até aquela tarde em que vi a tal banda tocando nos fundos da casa de Carlos, na época conhecido por Lion.
Munido com uma Canon Av-1 – Speedlite 177A e uma lente olho de peixe, peguei a tarde livre na papelaria onde eu trabalhava de balconista e fui fotografá-los em um ensaio. A medida em que tocavam, o pequeno cômodo se incandescia, não pela florescente que estragava os melhores ângulos para as minhas fotos, mas pela irreverencia daquela trupe. As músicas, não me lembro de muita coisa, mas acabaram por me contagiar de alguma forma. As letras, em inglês, carregavam um belo potencial. Críticas, filosóficas e divertidas. Tudo isso com poucas mas bem pesquisadas palavras. É claro que estamos falando de garotos pertencentes a classe burguesa de uma cidade chamada Pomerode. Os seus gritos de subversão e suas necessidades eram muito diferentes de algum moleque pobre da periferia do mundo. Mas isso não lhes tirou a poesia e a beleza da sua arte. Eram irreverentes, de certa forma rudes, promíscuos e, sem dúvida nenhuma, muito inteligentes. Tanto é que, pasmem, eles sobrevivem até hoje.
Quando voltei para a papelaria eu pedi ao Alexandre, na época o dono da loja, para que ele revelasse as provas do material, afinal, ali funcionava também um estúdio fotográfico. Feito isso eu levei as tiras para eles que me presentearam com uma fita cassete. Lembro de passar horas escutando-os e admirando a capa daquele trabalho. Me sentia orgulhoso por eles terem escolhido as fotos e ainda por cima agradecerem a minúscula participação que tive naquela história.
Da banda em si eu me recordo do Carlos e do Júlio, que tocava alucinadamente bateria. Por sorte, tive a oportunidade de vê-los juntos e os tomei como referência em um trecho da minha vida. Não sei ao certo se Júlio era da Upsetters, mas os dois viviam grudados e ambos influenciaram de forma de forma indelével a geração anos noventa em Pomerode.
Eu jamais conversei realmente com aqueles sujeitos, somente o trivial, na maioria das vezes curtos diálogos de balcão. Pertencíamos a classes sociais distintas, mundos astrais paralelos. Não líamos os mesmos livros e é muito provável que se estourasse uma revolução naquele recorte de mundo, lutaríamos em lados opostos. Havia, no entanto, entre nós uma certa cordialidade, um respeito mútuo que é possível somente entre aqueles que, assim como eles, fazem arte e gente como eu, que existe para apreciá-la.

lente olho de peixe