A pequena cidade e o rio de água salgada

Acontece todo ano. Na maioria das vezes é inverno. Dessa vez, como agora tudo ficou diferente, ainda mais depois que eu  deletei o Insta e o Face, escondi-me aqui no meio de um outono.

Kappeln é uma cidade pequena onde o mar parece rio. Esse rio que também é mar chama-se Schlei. Na primeira vez que aqui estive, inclinei-me feito uma girafa e bebi água diretamente da margem do rio, quer dizer, do mar.  A água era, pasmem, salgada!  As gaivotas saíram caminhando desengonçadas a esconder o riso. Gaivota não é bicho de água doce! Meu ceticismo me fez corar.

Aqui tem um  pequeno porto que conta com poucos barcos. Alguns de pescar peixes, outros de pescar turistas. 

Foi com um desses últimos que cheguei até o farol de não sei o quê. 

É uma ilha que não é ilha. Chamam de ilha porque é uma reserva e não se pode caminhar até o farol. Dizem que os passos, principalmente dos turistas, incomoda os pássaros. Disse-me o simpático verdureiro da cidade. Tirei uma foto do meu filho no farol. Bom, como agora não tenho mais Instagram, inseri-la-ei-a aqui embaixo.

Outra coisa que chama atenção na cidade é a ponte que se abre. Todo dia se forma uma “multidãozinha” de turistas, como eu, para ver a ponte se abrir. Um ou dois veleiros atravessam o canal e depois as partes levantadas da ponte descem e se juntam num espetáculo da engenharia. O trânsito então flui como se aquele asfalto nunca tivesse se dividido. 

Tirando isso, há um moinho de vento em Kappeln. Em um inverno, há cerca de dez anos, resolvi brigar com ele, na verdade é uma menina, Amanda se chama. Na época, não sabia disso. Pensei se tratar apenas de um gigante. Uma das hélices me pegou de surpresa pelo colarinho e me atirou longe. O conhecimento tem que ser empírico.

Perto do moinho há uma pequena fábrica de chocolates e, perto do porto, um casarão abriga um cineminha antigo. Apenas uma sala a passar repetidamente o novo 007. 

Amanhã terminam-se minhas duas semanas de férias no Mar Báltico. Vou-me embora e as gaivotas então podem rir dos outros trouxas que não acreditam no rio de água salgada. 

Lista de material escolar

A loja ficava no centro da cidade. Era uma charmosa construção enxaimel com gerânios a adornar os parapeitos das janelas.
Eu trabalhava como balconista naquele comércio especializado em revistas, fotografias, papelaria, jornais, livros entre milhares de outras quinquilharias, como por exemplo, material escolar.
O verão sempre foi um período de poucas vendas. Devido ao calor infernal e a ausência de vento, muitos pomerodenses fogem para o litoral.
No entanto, pouco antes do início do ano letivo, tudo se transformava.
Uma miríade de pais, mães e filhos invadiam a loja com enormes listas. Famílias inteiras apinhavam-se no balcão da loja. Nós éramos caçados como verdadeiras “pseudocelebridades”. Depois de muita espera, havia famílias que chegavam a chorar de alegria com a  simples pergunta:
– Vocês já foram atendidos?
Minha estratégia era sempre começar pelos itens que não geravam conflito como, por exemplo, cartolina, papel crepom e plástico transparente.
Depois vinham os cadernos. Capa dura ou capa normal? Bom, discussões estéticas entre os membros de uma família, confesso, não era um problema dos mais sérios.
O negócio complicava mesmo era com as caixas de lápis de cor. Tal escolha foi motivo, tenho certeza, de um número sem-fim de separações.
A criança tentava ganhar uma de trinta e seis, o pai argumentava que na época dele não tinha esse negócio. Lápis de cor era a caixa de doze e, ainda por cima, a pequena. As mães intercediam pelos pequenos… “Quem sabe levamos a caixa de vinte e quatro, assim todos ficamos felizes.”
O clima de guerra se acentuava nas pequenas coisas. Lápis ou lapiseira? Borracha branca  pequena ou grande em forma de elefante? Penal, de napa simples ou de náilon com três pavimentos? Régua acrílica com a tabuada impressa ou de madeira? Giz de cera “jumbo” ou do magrinho que só de olhar já se quebra inteiro?
Cada pergunta por mim proferida gerava discussões acaloradas. Caneta Bic era castigo. A mãe olhava para o “serzinho” e dizia: “Se tu não se comportar vou levar apenas uma caneta Bic para ti! Na minha época a gente só tinha isso!”
Teve uma vez que, no intuito de conseguir um apontador de trenzinho, um menino forjou um ataque epilético com direito a contrações musculares e tudo mais. A mãe, desesperada, chamou o pai. Assim que este apareceu o menino levantou prontamente e achou lindo o apontador de ferro simples.
Naqueles anos que ali trabalhei  vendendo material escolar, vi crianças sendo arrastadas pelo chão até o carro; maridos gritando com suas mulheres, mulheres berrando com seus maridos, crianças tomando cascudo, puxões de orelha, beliscões.
Aterrorizante era quando a mãe ou o pai, de fala baixa e sem muitas expressões, olhava para a filha ou filho a ter um chilique e dizia: Em casa a gente conversa.
Eu, em minha voluntária  posição de “conciliador familiar”, mostrava para as crianças o quão legal era ter um apontador sem lixeira pois era a chance de poder levantar e dar um “rolê” pela sala para apontar o lápis. Além do mais, a caixa de lápis de cor de doze cores era leve e possibilitava um número sem-fim de combinações. Monet permaneceria Monet com apenas duas cores. Com doze cores diferentes era possível criar um universo.
Dada minha dialética enfadonha, muitas crianças, infelizmente, passaram a me odiar, mas, quando a criança aceitava meus argumentos, a família jubilava e me agradecia sem parar.
Não era fácil sobreviver aquelas listas. Digo mais, se eu fosse padre, em vez de mandar meus confessionários rezarem eu os mandaria vender uma, duas ou três listas de material escolar, dependendo o tamanho do pecado.

A Praia de Navegantes… O nosso Caribe

O verão está a bater em nossos portais. As temperaturas estão a alcançar os trinta graus centígrados; porta-malas abrem as suas bocas, prontos para receber as bagagens de fim de ano. É possível até sentir o cheiro salso da maresia na Cidade mais Alemã do Brasil.
Quando eu era pequeno passávamos, enquanto família, uma única semana no litoral.
A praia de navegantes era o nosso Caribe. Quantas expectativas, sonhos e alegrias estavam atrelados aqueles dias tragicômicos.
A casa emprestada era de madeira, o terreno pequeno e arenoso, uma cerca de arame farpado delimitava o espaço. Gaivotas planavam, piavam e soltavam cocôs em pleno voo. Uma brisa leve e gostosa soprava sem intervalos comerciais. Tudo isso encantava a minha alma e apetecia os meus sentidos.
Dentro da casa, móveis antigos aglutinavam-se. Tudo sem o menor sentido estético, aliás, essa era a real beleza do lugar. A televisão colorida gigante, com quadro de madeira e botão giratório que fazia clac, clac, clac… O Sofá de couro surrado, a geladeira azul-calcinha entupida de imãs. Aliás, aqueles imãs eram um ancestral do Google. Ali havia todas as informações necessárias à vida praiana. Pizzaria Bella Donna, PróGás, Farmácia do Luiz, etc…
O fogão enferrujado, a torneira preta de plástico, o vaso sanitário de louça verde com tampa de PVC marrom, além dos azulejos, uns diferentes dos outros e devidamente assentados sem lógica. Os quartos eram entupidos de beliches e os colchões tão velhos e moles que, se alguém dormisse ali mais do que duas semanas, certamente tornar-se-ia sócio de uma clínica ortopédica.
Do lado de fora uma reta, feita de cascalho arenoso cheia de buracos, se estendia até o horizonte.
Para se chegar a praia era preciso andar “toda a vida reto”, atravessar uma avenida, passar por uma restinga e, então, a infinitude do Oceano Atlântico em ondas médias nos convidava a brincar de jacaré até não poder mais, quer dizer, até a oma destruir o sonho com seus argumentos pouco científicos.
Para ela, água somente até a altura dos joelhos, caso contrário o repuxo me sugaria e eu desapareceria sem deixar vestígios, como um navio a cruzar o Triângulo das Bermudas.
O meu tempo na praia era dividido pela oma em 10% mar e 90 % embaixo do guarda-sol, pois, segundo ela, eu “pegaria” câncer na cabeça ou o sol cozinharia o meu cérebro, tal como aconteceu com o neto da Trudi sua amiga, possivelmente, imaginária.
Foi ali, meus amigos, que aprendi a ser feliz em uma sombra de cinquenta centímetros de diâmetro.
Para a mãe, os monstros eram os bichos do pé que rondavam as cercanias da casa. Caminhar por ali somente com chinelo de dedo, caso contrário os berros histéricos de mamãe alcançariam o aeroporto.
– PÕE O CHINELO! QUANTAS VEZES TENHO QUE TE FALAR! OLHA OS BICHOS DO PÉ, MEU FILHO.
À noite, ou éramos comidos pelos mosquitos, ou aguentávamos o cheiro do SPB, terrível contra os insetos e, lógico, contra os nossos pulmões.
Enfim, aqueles dias contentes passaram, a oma morreu e eu cresci sem maiores sequelas na cabeça ou no pé. Agora é hora de imaginariamente encher o porta-malas e partir para o Caribe, quer dizer, Navegantes.

A lagoa atrás do ginásio

É assustador saber que o lugar mais perigoso do mundo fica em Pomerode, pelo menos assim o era na cabeça fértil de minha oma.
Para ela, maconhados da pior categoria dominavam o tal espaço. Eles passavam o dia escondidos e saíam à tardinha, feito zumbis. Creio até, segundo as realistas narrativas da oma, que foi lá que Michael Jackson encontrou a trupe que protagonizou o Clipe Thriller.
A lagoa atrás do Ginásio era, para ela, um lugar apocalíptico, uma Maconhalândia, onde, depois de utilizadas as seringas que os maconhados utilizavam para se drogar, simplesmente as jogavam naquele charco.
Eu era um rapagão de uns oito anos de idade e adorava jogar futebol aos sábados de manhã no Ginásio de Esportes Ralf Knaesel. Eu “voava”com minha BMX de rodas amarelas pelas ruas de paralelepípedo da cidade mais alemã do Brasil. As fortes palavras de minha oma, no entanto, me assombravam.
Mein Gott, meu neto! Depois do futebol, por favor, direto para casa e nunca, mas nunca mesmo, ouse chegar perto dos maconhados que vivem na lagoa atrás do Ginásio!
Eu assentia para a matriarca da família e, assim que o nosso grande mestre Euclides nos dispensava, eu voltava para casa.
Eis que o tempo, como sempre, passou e a adolescência chegou.
Era um dia quente e por todos os lados se viam olhos de boneca a florescer. Em minha memória guardo o cheiro doce e a beleza rara de nossa mais comum orquídea.
Eu estava quase chegando no JB quando fui interpelado por alguns amigos que me convidaram para um piquenique. Sem perguntar onde iríamos, aceitei de pronto participar da aventura. Subimos a Avenida Vinte e Um de Janeiro cantarolando, felizes como muitas vezes, ao infringir pequenas regras, os adolescentes se sentem.
Alcançamos o famoso Ginásio, atravessamos todo o complexo onde acontece a Festa Pomerana e, quando caí em mim, estava diante do lago que tanto me assombrou enquanto menino.
Para minha surpresa, não havia nenhum zumbi ou maconhado a se drogar, na verdade não havia nem lixo por ali e a natureza era sublime.

– Devem estar todos escondidos! – Pensei um pouco alto.
O céu bávaro era refletido na água barrenta porém calma da lagoa. Periquitos, pintassilgos, canários da telha adornavam nosso estar ali com sons e cores.
De repente, meus amigos se jogaram na água. A imagem da oma surgiu em minha alma. Eles morreriam infectados pelas agulhas dos drogados. Eu estava prestes a adverti-los quando a menina mais bonita da sala pediu para eu pular. Me senti o próprio Asno de Buridan. Ela gesticulava. Eu suava e permanecia estático. Os outros se juntaram a ela e um coro uníssono espantou os pássaros.
-Pula! Pula! Pula!
Meu coração disparou. Lembrei-me das palavras de Goethe em Fausto “Duas almas, oh! Moram dentro do meu peito, e aí lutam por um indivisível reino…”
De um lado a doce menina, do outro, o meu pé perfurado por alguma agulha contaminada.
– Pula! Pula! Pula!
Pensei em fugir, mas num impulso impróprio do meu ser, mergulhei no lago com a coragem que eu não tinha. Constatei empiricamente que não havia agulhas ali, tampouco drogados escondidos.
A lagoa atrás do Ginásio deixara de ser o lugar mórbido infernal de minha imaginação e metamorfoseava-se, diante dos meus olhos, em paraíso.
O grande problema é que para alcança-lo eu tinha que passar antes pelo purgatório.
Dona Miriam, a mulher do delegado e, na época, diretora do JB, chegou com seu gol e nos pegou em flagrante matando aula. O pneu furado, o julgamento e o resto da história, amigos, ficam para um outro dia.

A paranaense gostosinha

Hoje eu passeei pela floresta. Gosto da solidão do bosque e de pensar nas coisas do mundo. Confesso que a notícia daquele moço que foi morto por seguranças do Carrefour partiu-me o coração. Algumas lágrimas me escapuliram e, quando percebi, estava a soluçar.
Pomerode foi, para mim, o começo de todas as coisas, o início de cada um dos meus sentimentos. Teve um dia, atrás da nossa casa, no finzinho da Jorge Jung que, pela primeira vez, chorei por alguém.
Eu me Lembro de quando eles vieram com a mudança. Era um caminhãozinho Mercedes Benz aberto. Os móveis estavam bem amarrados. Um roupeiro de madeira compensada ocupava a maior parte da carroceria, um colchão de casal, cômoda, cadeiras, um sofá de dois lugares, geladeira, televisor, fogão. Enfim, o básico do básico para se começar a vida.
Eles vinham do norte, de um outro estado da federação, um lugar chamado Paraná.
Desembarcaram acompanhados de felicidade, esperança, expectativas e o medo que se instaura em nós diante do novo.
Em pouco tempo ele conseguiu emprego em uma marcenaria e ela passou a trabalhar como doméstica na casa de um empresário. Ambos eram novinhos, não mais do que vinte anos. Estavam apaixonados e viviam a sonhar com uma gravidez e com as possíveis conquistas materiais. Pomerode é uma cidade que permite as pessoas o sonho. Foi assim com os nossos antepassados que construíram este lugar é assim com as pessoas que aqui chegam e buscam a mais sublime das dignidades, a dignidade humana.
A moça, vaidosa e de beleza simples, chamou atenção do patrão. Este começou a persegui-la. Esperava a mulher e os filhos saírem para assediá-la. Ela esquivava-se com todas as forças. Queria sair do emprego, mas o homem disse que se saísse, não haveria mais lugar para ela e para o marido em Pomerode, então calou-se.
Lembro-me, depois de chegar da escola, vê-la sentada com minha mãe a chorar desesperada. Um dia o inevitável aconteceu. Era uma dessas tardes pacatas de nossa cidade, em uma casa bonita de avenida. Ela estava a limpar um dos banheiros quando o homem trancou-se junto a ela e a estuprou. Depois de satisfazer-se desferiu ameaças contra a moça. Sentindo-se suja, ela pegou a bicicleta e foi para casa. Em pânico, na esperança de uma ajuda, ela contou o acontecido para o marido e pediu perdão. Este, enfurecido, não foi tirar satisfação com o empresário, resolveu dar uma surra na mulher e só parou porque minha mãe interveio.
Dias depois, o mesmo Mercedes Benz que os trouxe, levou-os embora. Agora, no entanto, já não havia mais felicidade, tampouco esperança, apenas tristeza e desolação.
Eu devia ter uns quatorze anos naquela época e era colega do filho do empresário. Estávamos no intervalo de um jogo de futebol no campo do Floresta quando o rapaz foi ter comigo:
– Meu pai disse que aquela tua vizinha, a paranaense gostosinha, foi embora sem mais nem menos. É mesmo uma raça preguiçosa!
Eu fiquei em silêncio, minhas bochechas avermelharam-se e meu rosto ardeu em chamas. Não sei como consegui ainda me despedir. Eu corri em direção a Avenida Vinte e Um de Janeiro e, quando ali cheguei, longe dos olhos dos outros moleques, debulhei em lágrimas.