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O tempo e a inveja

Somos todos tão diversos. Estamos sempre falando sobre isso apesar de não entendermos o seu significado mais profundo. Somos condicionados a aceitar coisas que em nosso íntimo não concordamos. O constante mascaramento do nosso ser é, eu sei, tema velho, porém jamais batido.
Na verdade eu queria escrever sobre o meu encanto pela diversidade climática do planeta e pela constante insatisfação humana.
Passo horas em meu globo a admirar o Equador esse traço imaginário que divide a Terra em dois hemisférios tão distintos. Eu, como o saudoso Mujica, também sou do sul e venho do sul. Morei algum tempo um pouco acima da esquina do Atlântico com o Rio da Prata. Um lugar que ainda hoje tenho como lar.
Aos trinta emigrei para o norte e desde então, um dos meus passatempos prediletos, com meu pai ao telefone, é comparar e reclamar do tempo. É a matéria-prima das nossas conversas, o motor inicial dos nossos diálogos. Assim que ele reconhece a minha voz, se põe logo a perguntar como está o clima por aqui. Em tempos de inverno alemão eu falo da neve, do frio, da escuridão e das árvores peladas. Ele, do outro lado, escuta, suspira e murmura a sua inveja pelo fato de eu estar com os pés gelados e andar de touca.
Terminada a minha lamuriosa explanação eu o indago sobre os ares subtropicais. Meu pai, em tom fúnebre, fala do calor infernal, do protetor solar 1500, das trovoadas parecidas com tufões, da astronômica conta de luz gerada pelo ar condicionado obsoleto. Eu escuto tudo calado, pensando na inveja que sinto de tomar um “sapecão”, de dormir somente de calção, de acordar encharcado, abrir a janela do apartamento e sentir aquele bafo atmosférico cheio de valentes mariposas e capaz de assar uma batata.
A loucura dessa história toda é que basta um dia no outro hemisfério para esquecermos tudo o que desejamos e sentir uma saudade bruta daquilo que não temos.

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Melancolia permitida

No Richthof a sexta-feira se fez tempestuosa. Na pequena conferencia matinal eu me prontifiquei a fazer uma salada além de brusquetas para um grupo berlinense de Euritmia que irá se apresentar aqui no teatro da comunidade.
Depois da reunião eu caminhei até o escritório central, despachei documentos e fui em busca de alguns restos de tapeçaria para construir um espaço de brincar para o Gabriel. A manhã se arrastava feito um moleque lânguido. Eu cheguei em casa, recebi os recados, subi, dei um cheirinho no meu filho, brinquei um pouco com ele, desci, preparei um cappuccino, li a manchete do jornal. A foto de como ficou o escritório do Charlie Hebdo após o ataque terrorista não me deixou puto e sim triste.
Eu até ensaiei algum comentário com as moradoras aqui de casa sobre o assunto, mas nada do que eu dissesse teria efeito. Estávamos todos estupefatos e, de certa forma, um pouco intimidados, afinal, a violência, mesmo que à sombra dos grandes meios de comunicação, tem o poder de disseminar o pânico e a insegurança.
Durante a tarde, sem maiores explicações meteorológicas, as temperaturas subiram e uma tempestade se lançou sobre a floresta das árvores peladas. Sentado em frente à janela do meu quarto, aproveitei o resto do dia para usufruir ao máximo e sem culpa a minha melancolia.

O homem que sabia tadjique

Como sempre acontece aqui na comunidade, depois das férias de verão, aparece gente de vários cantos do mundo para o voluntariado de um ano.
Junto aos moradores da comunidade, a pluralidade cultural que se forma com os estrangeiros é uma coisa fantástica. Nessa nova jornada que se inicia, aportou em nossa vila: um brasileiro, uma colombiana, um guatemalense, um chileno, alguns russos, um japonês, um chinês, um senegalês, alguns húngaros e dois tadjiques, sendo um deles, o voluntário escolhido para me ajudar aqui em casa.
Dezenove anos. Busquei o sujeito semana passada na estação de trem. Fala pouco alemão, nada de inglês e, em espanhol, somente “muchas gracias”. Bom, o menino tem fluência em russo. O que, em nossa situação, pouco ajuda.
Estamos a nos comunicar por gestos, intuição, erros e acertos. Olhos esbugalhados, medo de encostar nas pessoas aqui de casa, pânico! Eu tento puxar conversa, pesquiso palavras em russo, fico a explicar-lhe que ele deveria saber, pelo menos superficialmente, aquilo que viria. Ele responde que sim. Aliás, a única coisa que ele faz em alemão é dizer que sim.
Ontem descobri que o menino é muçulmano e, logicamente, não come carne de porco. Foi a primeira vez que, enfático ao olhar algo, nos disse: Não, não! Em uma família como a nossa, inserida em uma cultura de salsichas, é de pressupor que a vida não será fácil.
Para tentar acalmar os ânimos e deixa-lo um pouco mais à vontade eu resolvi levar a nossa excêntrica família a um restaurante. Procurei algo parecido com a culinária do Tadjiquistão. Em minhas pesquisas descobri que prato nacional do país se chama Palav ou Plov, uma mistura de arroz e carne de ovelha, normalmente a ser comido com a mão. Obviamente, não encontramos nada parecido, sendo assim, acabamos no Flor de Lótus, um restaurante especializado em comida asiática. Creio que para ele foi um alívio. Depois de quatro pratos bem servidos o menino sorriu satisfeito, chegou a fazer brincadeiras e abraçar alguns dos nossos.

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O romantismo e a realidade

Vocês lembram do bom e velho Freud e seu princípio da realidade versus o princípio do prazer?
Eis aqui um resumo do negócio. Mas vamos lá, no caso do romantismo e da realidade acontece algo parecido. Na aurora dos meus trinta anos eu decidi largar o sedentarismo e mudar de vida. Quem acompanha o Blog sabe disso. Eu estava engordando a passos largos. Comia muito e em horários inadequados. Gostava de pedir pizza ou hambúrgueres em plena madrugada. Tudo acompanhado de muitas cervejas. Fumava como um louco. Nada de cigarros. Nunca gostei de cigarro. Eu tinha um cachimbo que ganhei de presente de aniversário. Eu apreciava um bom fumo sabor cereja ou chocolate.
Eu caía na cama lá pelas cinco da manhã, acordava as onze, tomava um banho e dirigia até a escola onde eu lecionava. Me sentia um paquiderme.
Foi então que eu tive a infeliz ideia de procurar uma academia. Aquela gente toda encapsulada em fones de ouvido, correndo em esteiras, pedalando bicicletas que não saem do lugar, puxando pesos coloridos importados da China. A busca pelo corpo estereotipado em um lugar da moda me era artificial demais.
Uma manhã, depois da ideia, me veio a vontade. Eu precisava escapar, fugir, correr. Obcecado, ainda com o copo de cerveja sobre a mesa, o cachimbo na mão esquerda, o mouse na outra e os olhos vidrados na tela do computador, passei a procurar um lugar para recomeçar.
Imagens românticas de fazendas com vaquinhas ao fundo, um mar de verde, duas ou três construções em estilo enxaimel, uma chaminé. Sim! Era isso que eu queria para mim. Trabalhar em uma fazenda. Ser um hortifrutigranjeiro, respirar ar puro, jogar milho para as galinhas, em terdes douradas, com um chapéu de palha, sentar para descansar embaixo de um carvalho gigante.

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Como um presente, depois de alguns meses, eu estava com meus pés em um lugar idêntico aquele idealizado por mim. Eu, finalmente, tornara-me um homem simples do campo. De jardineira, sentado na relva, tomando um café ao sol, eu me sentia um poeta em meio a uma fonte infinita de inspiração.

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Tudo perfeito, maravilhoso, romântico, até o dia que a realidade bateu a minha porta. Pouco antes do inverno, colocaram-me uma pá nas mãos e conduziram-me ao estábulo onde pude exercitar meus músculos em meio ao excremento das vacas.

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Preconceito

Ultimamente tenho lido, ouvido e assistido muitas coisas sobre preconceito.
Uma avalanche de vídeos, fotos e artigos denunciam atos racistas. Eu creio, positivamente, que isso que está acontecendo é um sinal de amadurecimento de um povo que lentamente está despertando para algo maior.
É louco ver o agressor ou agressora, depois de uma ação preconceituosa, ser rechaçado ou rechaçada na mídia e, é claro, na vida real.
Lembro o caso da professora que fez a infeliz comparação entre aeroporto e rodoviária, ou seja, entre ricos e pobres, ou a torcedora do Grêmio que, num impulso colérico, gritou ao goleiro Aranha do Santos: Macaco! Macaco! São realmente atos grotescos e precisam ser denunciados. No caso das duas, é perceptível também que, ambas estão a amargar uma culpa praticamente insuportável.
Eu, no Brasil, não pensava muito sobre o tema. Era como se não tivesse nada a ver comigo. Estúpido? Ignorante? Talvez, mas eis que a vida me trouxe até a Alemanha e aqui, minha postura, meus abraços, meu sotaque, minha brasilidade, meu “ser diferente”, fez com que eu sentisse o que é ser discriminado.
Lembro que uma vez eu estava em um supermercado. Como por aqui eu ando muito de bicicleta, é comum eu carregar uma mochila nas costas. Simone estava comigo. Nós conversávamos meio em alemão, meio em português, afinal estávamos pouco mais de um mês no país e ainda não dominávamos completamente o idioma (Ainda não dominamos. Aprender alemão é coisa para duas ou mais vidas). Eis que perto da saída, uma das repositoras, ouve a nossa conversa, olha para a operadora de caixa e sussurra: Estrangeiros!
Bom, não deu outra. Chegamos com a água, o pão, o leite e um chocolate, pagamos e a mulher, é claro, pediu para ver o que eu tinha dentro da mochila. Antes de nós, um rapaz com uma bolsa gigante, dessas que se carrega laptops de dezessete polegadas, nem abordado foi. Eu tentei argumentar, mostrar quão errada ela estava, mas com a chegada do segurança, eu vi que aquela era uma causa perdida. Abri a mochila vazia, empacotei as compras e com Simone, seguimos tristes para casa.

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