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Cócegas no cérebro

A primavera, no sul do mundo, é o momento em que o verão ainda não sabe que deixou de ser inverno, flores surgem em demasiada intensidade e por todos os cantos. Já por aqui, no Morro dos Pássaros, o inverso acontece. Nosso inverno não percebeu que o verão está de malas prontas e o vento está a soprá-lo para um outro hemisfério. Para mim, outono é a deixa para eu ficar em casa, tomando chá de hibisco e coçando o cérebro.
Faz poucas semanas que retornei do Brasil e trouxe dezenas de revistinhas Passatempo, aquelas de palavras cruzadas. Foi um dos modos que encontrei para a língua portuguesa, que tanto amo, todavia pouco compreendo, não me caia no esquecimento total.

Imaginem uma miríade de borboletas dentro da cabeça a voar e a bater asas de um lado para outro a fazer cosquinhas nas paredes de nosso órgão maior. É exatamente isso que eu sinto quando tenho diante de mim um livro de palavras cruzadas. Vocês bem sabem que a vida é um compêndio de pequenas felicidades.

Quando, em meu compasso Bienal, chego na Cidade de Blumenau, lugar que meus pais escolheram para viver, enclausuro-me em nostalgia. Enquanto adolescente, Blumenau era o lugar onde eu fugia para matar aula, simplesmente porque um dia a escola onde eu estudava ficou pequena e Pomerode já não supria mais minhas necessidades hormonais. Era a fuga do paralelepípedo para o asfalto. Nas primeiras vezes o grupo delimitava o meu fazer. Nós curtíamos Jogar Street Fighter em alguma máquina de fliperama entre a Rua XV e a Beira Rio, dar uma passadinha na Be Bop e então fumar Gudang Garam embaixo da ponte de Ferro.
Com o tempo, na medida em que aquela cidade “grande” se tornava conhecida e tudo o que é conhecido torna-se “pequeno”, desprendi-me do grupo e, em meu caminhar, na descoberta do meu próprio itinerário, continuei a construção do meu eu.

Descobri, na rua sete de setembro, um lugar, o meu lugar. Estava envolto em uma fachada prosaica, protegida por uma porta de vidro com uma pequena placa onde lia-se “Aberto”. Entrei simplesmente por entrar. Não posso dizer-lhes que foi por acaso, porque acredito muito mais no destino, mas foi lá, na Book Center, um sebo apinhado de livros, que comecei a voar nos livros e aprendi o prazer das palavras cruzadas.

Dias Chuvosos

Sempre ouvi dizer que os dias chuvosos são tristes enquanto aqueles em que o sol brilha em um céu anil são alegres e gloriosos.
Não concordo com essa lógica porque sempre fui muito mais feliz com os gélidos pingos de Deus em minha cara. Nas épocas em que andava de ônibus em Florianópolis, muitos olhavam com desdém para minhas lustrosas botas Sete Léguas que mantinham os meus pés secos, pois o resto pouco me importava. Os pés são o termômetro do corpo.
Hoje, acordo cedo e, nos poucos dias que fujo da comunidade,  me regozijo em estacionar o carro perto da floresta, abrir um livro, tomar café com leite em copo de papelão e ouvir o tamborilar da chuva.

Hibernação

Não! O Vinhetas não morre, ele hiberna. É uma estratégia (in)consciente de fazer com que todos me esqueçam, simplesmente para eu me reinventar de forma livre.
O frio, mesmo com a proximidade do verão, mantém-se firme no Morro dos Pássaros.
O clima de férias nos chega aos poucos. A lista de afazeres míngua em noites e madrugadas entupidas de números, formulários e documentos.
Vaga-lumes dançam nos jardins do palacete e eu não posso vê-los porque estou no porão da casa Jawlensky, na frente do computador, a fazer contas que não são minhas!
Pelo menos, muito mais por obrigação do que por vontade própria, comprei a passagem e logo vou, com a família Buscapé, para o lugar que um dia chamei de lar.

Sobre Prestes e Lopes

Depois de quatro semanas, reativei o dito Instagram. Nesse meio tempo, acabaram-se as férias; os concertos de fim de semana voltaram com força total, o outono despeja, em mim, toneladas de folhas amarelas, vermelhas e roxas. Nas quatro semanas que fiquei sem ver as fotos daqueles que amo, consegui ler o livro de Daniel Aarão Reis sobre Luís Carlos Prestes. Bom, vale a pena a leitura? Sim, no meu caso valeu, e muito! A lendária marcha, no início do livro, após uma curta explanação sobre a infância e juventude desse fantástico ser, me levou para os cantões mais inóspitos do nosso amado Brasil. O livro é muito mais jornalístico do que poético, mas isso não tirou a magia daquela que, talvez, foi a maior saga da nossa História. No entanto, uma pergunta tola ficou em meu coração. Desde o início, talvez pela narrativa do autor, era presumível o fracasso da marcha, então, por que eles marcharam?
Tem uma frase de Galeano que me acompanha e, talvez, explique o porquê… A utopia, diz ele, está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. 
Aliás, se colocarmos os pingos nos is, a vida de Prestes foi uma sucessão ininterrupta de infortúnios políticos, mas o carinha mirrado não desistiu, ele persistiu no sonho de um Brasil mais justo e, depois que se “converteu” ao comunismo, quis também um país sem classes. Não sei se ele conseguiu fazer muito, mas ele desejou e o seu desejo transformou-se em luta, uma luta que, durante anos, foi travada lá onde o vento faz a curva, num país chamado Rússia. Foi Prestes que fez do PCB um partidão e, quando este foi convidado  a se retirar, o Partido Comunista Brasileiro se minusculizou. 
Enfim, independente da escolha política de cada um, o livro de Aarão é fundamental para a compreensão da nossa história política. Uma das coisas que me encanta em ler livros é a semente da curiosidade que nos lança em outras jornadas… Confesso que, entre outros, fiquei curioso para saber mais sobre Leonel Brizola. Em breve, quem sabe nas férias de inverno, encantar-me-ei com Clóvis Brigagão e Trajano Ribeiro; assim, quem sabe, compreenderei mais as escolhas de meu “Bruder” Fernando Lopes.

A Praia de Navegantes… O nosso Caribe

O verão está a bater em nossos portais. As temperaturas estão a alcançar os trinta graus centígrados; porta-malas abrem as suas bocas, prontos para receber as bagagens de fim de ano. É possível até sentir o cheiro salso da maresia na Cidade mais Alemã do Brasil.
Quando eu era pequeno passávamos, enquanto família, uma única semana no litoral.
A praia de navegantes era o nosso Caribe. Quantas expectativas, sonhos e alegrias estavam atrelados aqueles dias tragicômicos.
A casa emprestada era de madeira, o terreno pequeno e arenoso, uma cerca de arame farpado delimitava o espaço. Gaivotas planavam, piavam e soltavam cocôs em pleno voo. Uma brisa leve e gostosa soprava sem intervalos comerciais. Tudo isso encantava a minha alma e apetecia os meus sentidos.
Dentro da casa, móveis antigos aglutinavam-se. Tudo sem o menor sentido estético, aliás, essa era a real beleza do lugar. A televisão colorida gigante, com quadro de madeira e botão giratório que fazia clac, clac, clac… O Sofá de couro surrado, a geladeira azul-calcinha entupida de imãs. Aliás, aqueles imãs eram um ancestral do Google. Ali havia todas as informações necessárias à vida praiana. Pizzaria Bella Donna, PróGás, Farmácia do Luiz, etc…
O fogão enferrujado, a torneira preta de plástico, o vaso sanitário de louça verde com tampa de PVC marrom, além dos azulejos, uns diferentes dos outros e devidamente assentados sem lógica. Os quartos eram entupidos de beliches e os colchões tão velhos e moles que, se alguém dormisse ali mais do que duas semanas, certamente tornar-se-ia sócio de uma clínica ortopédica.
Do lado de fora uma reta, feita de cascalho arenoso cheia de buracos, se estendia até o horizonte.
Para se chegar a praia era preciso andar “toda a vida reto”, atravessar uma avenida, passar por uma restinga e, então, a infinitude do Oceano Atlântico em ondas médias nos convidava a brincar de jacaré até não poder mais, quer dizer, até a oma destruir o sonho com seus argumentos pouco científicos.
Para ela, água somente até a altura dos joelhos, caso contrário o repuxo me sugaria e eu desapareceria sem deixar vestígios, como um navio a cruzar o Triângulo das Bermudas.
O meu tempo na praia era dividido pela oma em 10% mar e 90 % embaixo do guarda-sol, pois, segundo ela, eu “pegaria” câncer na cabeça ou o sol cozinharia o meu cérebro, tal como aconteceu com o neto da Trudi sua amiga, possivelmente, imaginária.
Foi ali, meus amigos, que aprendi a ser feliz em uma sombra de cinquenta centímetros de diâmetro.
Para a mãe, os monstros eram os bichos do pé que rondavam as cercanias da casa. Caminhar por ali somente com chinelo de dedo, caso contrário os berros histéricos de mamãe alcançariam o aeroporto.
– PÕE O CHINELO! QUANTAS VEZES TENHO QUE TE FALAR! OLHA OS BICHOS DO PÉ, MEU FILHO.
À noite, ou éramos comidos pelos mosquitos, ou aguentávamos o cheiro do SPB, terrível contra os insetos e, lógico, contra os nossos pulmões.
Enfim, aqueles dias contentes passaram, a oma morreu e eu cresci sem maiores sequelas na cabeça ou no pé. Agora é hora de imaginariamente encher o porta-malas e partir para o Caribe, quer dizer, Navegantes.