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Os 800 da África e a explicação ignorante

Pensem nas crianças se debatendo no mar até que, por fim, a água salgada vence a batalha e domina os pulmões daqueles pequenos moribundos. Isso também acontece com algumas centenas de mulheres e homens de um continente desgraçado. Se pudéssemos ouvi-los, primeiro ficaríamos destroçados pelo choro abafado, pelos gritos desesperados e, por fim, seríamos dominados pelo terror do silencio absoluto.
Naquele mesmo mar, em praias paradisíacas, não tão distantes assim, entupidas de turistas, famílias curtem um ensolarado dia de sol. Crianças de propaganda de televisão constroem castelos de areia, solteiros sarados mergulham e mulheres de seios siliconados se refrescam na água morna. Ouvem-se risadas, música alegre, jamais a calada.
A justificativa espúria que fui obrigado a ouvir de um amigo com sua passagem aérea para Ibiza, sobre os oitocentos mortos no último naufrágio de refugiados africanos no Mar Mediterrâneo, foi severa…
Imagine que você possui uma casa confortável e espaçosa. Você tem um gato, compra comida da melhor qualidade para ele, leva-o frequentemente para o veterinário, brinca com o bichano, enfim, você o ama incondicionalmente e dá tudo de melhor para ele.
Em bairros distantes do seu vivem muitos outros felinos em condições precárias de existência. De repente um desses gatos, cuja existência você ignorava, aparece no seu quintal. Você, dotado de compaixão, o alimenta.
Um dia depois aparece outro, então outro, mais um, três, nove, doze. Nas semanas subsequentes os espaços físicos da sua vida estão completamente preenchidos por felídeos.
No intuito de dar comida para todos aqueles coitados, você acaba não tendo o suficiente para alimentar-se a si mesmo e acaba morrendo.

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Melancolia permitida

No Richthof a sexta-feira se fez tempestuosa. Na pequena conferencia matinal eu me prontifiquei a fazer uma salada além de brusquetas para um grupo berlinense de Euritmia que irá se apresentar aqui no teatro da comunidade.
Depois da reunião eu caminhei até o escritório central, despachei documentos e fui em busca de alguns restos de tapeçaria para construir um espaço de brincar para o Gabriel. A manhã se arrastava feito um moleque lânguido. Eu cheguei em casa, recebi os recados, subi, dei um cheirinho no meu filho, brinquei um pouco com ele, desci, preparei um cappuccino, li a manchete do jornal. A foto de como ficou o escritório do Charlie Hebdo após o ataque terrorista não me deixou puto e sim triste.
Eu até ensaiei algum comentário com as moradoras aqui de casa sobre o assunto, mas nada do que eu dissesse teria efeito. Estávamos todos estupefatos e, de certa forma, um pouco intimidados, afinal, a violência, mesmo que à sombra dos grandes meios de comunicação, tem o poder de disseminar o pânico e a insegurança.
Durante a tarde, sem maiores explicações meteorológicas, as temperaturas subiram e uma tempestade se lançou sobre a floresta das árvores peladas. Sentado em frente à janela do meu quarto, aproveitei o resto do dia para usufruir ao máximo e sem culpa a minha melancolia.

Preconceito

Ultimamente tenho lido, ouvido e assistido muitas coisas sobre preconceito.
Uma avalanche de vídeos, fotos e artigos denunciam atos racistas. Eu creio, positivamente, que isso que está acontecendo é um sinal de amadurecimento de um povo que lentamente está despertando para algo maior.
É louco ver o agressor ou agressora, depois de uma ação preconceituosa, ser rechaçado ou rechaçada na mídia e, é claro, na vida real.
Lembro o caso da professora que fez a infeliz comparação entre aeroporto e rodoviária, ou seja, entre ricos e pobres, ou a torcedora do Grêmio que, num impulso colérico, gritou ao goleiro Aranha do Santos: Macaco! Macaco! São realmente atos grotescos e precisam ser denunciados. No caso das duas, é perceptível também que, ambas estão a amargar uma culpa praticamente insuportável.
Eu, no Brasil, não pensava muito sobre o tema. Era como se não tivesse nada a ver comigo. Estúpido? Ignorante? Talvez, mas eis que a vida me trouxe até a Alemanha e aqui, minha postura, meus abraços, meu sotaque, minha brasilidade, meu “ser diferente”, fez com que eu sentisse o que é ser discriminado.
Lembro que uma vez eu estava em um supermercado. Como por aqui eu ando muito de bicicleta, é comum eu carregar uma mochila nas costas. Simone estava comigo. Nós conversávamos meio em alemão, meio em português, afinal estávamos pouco mais de um mês no país e ainda não dominávamos completamente o idioma (Ainda não dominamos. Aprender alemão é coisa para duas ou mais vidas). Eis que perto da saída, uma das repositoras, ouve a nossa conversa, olha para a operadora de caixa e sussurra: Estrangeiros!
Bom, não deu outra. Chegamos com a água, o pão, o leite e um chocolate, pagamos e a mulher, é claro, pediu para ver o que eu tinha dentro da mochila. Antes de nós, um rapaz com uma bolsa gigante, dessas que se carrega laptops de dezessete polegadas, nem abordado foi. Eu tentei argumentar, mostrar quão errada ela estava, mas com a chegada do segurança, eu vi que aquela era uma causa perdida. Abri a mochila vazia, empacotei as compras e com Simone, seguimos tristes para casa.

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Aniversário

Nunca gostei muito dessa história de aniversário. Creio que herdei tal sentimento do meu pai que tem por hábito se esconder quando o assunto é ficar mais velho. O homem chega a pedir folga no trabalho, desliga o celular e tira o telefone do gancho.
Comigo não é muito diferente. No entanto eu me obrigo a encarar o mundo de frente, mas sem respostas ou agradecimentos generalizados em redes sociais. Sei que é tolo e depois eu me sinto culpado por não ter dito obrigado, mas a vida é cheia de contraditórios. Voltando ao “anos” em si. Dias antes do evento eu passo a sentir uma pontinha de tristeza, uma irritação pouco convencional com relação ao universo e as pessoas. Tudo me ofende, me agride, me dói. Ao abrir algum portal sensacionalista na internet me reporto as páginas policiais e depois de duas ou três notícias tenho a impressão que a maldade humana chegou ao seu apogeu, no sentido da sofisticação, é claro. Lembro sempre de uma coordenadora que vivia a repetir… “A barbárie humana, meus queridos, sempre existiu e vai continuar da mesma forma hoje e sempre”.
Na semana que antecede o “parabéns a você” me obrigo a fazer também uma retrospectiva crítica sobre o meu envelhecer. Ecoam, em minhas supérfluas meditações, perguntas do tipo…
Que forças motivaram minhas ações? O que eu li esse tempo todo? Será que consumi menos do que eu necessitava? Contribuí positivamente para com o mundo? Evoluí? O saldo é sempre o mesmo… Algum progresso mínimo, grandes estagnações e um número infinito de retrocessos, tais como ler páginas policiais e contemplar a tabela do Campeonato Brasileiro.
No entanto, o meu trigésimo quarto ano foi, por um único motivo, o mais intenso que já vivi. Ser escolhido para ser pai fez com que muitos dos meus paradigmas mudassem pra valer. Na verdade tudo ainda está mudando. Quando chego exausto, ferrado e deprimido, basta olhar aquele ser dócil engatinhando e sorrindo para que minha alma ganhe um novo impulso.
Outra coisa positiva que descobri em relação a aniversários é o repentino senso de alteridade dos outros para com você. Naquele dia único as pessoas evitam chamar-te de burro, idiota ou imbecil. Elas, de repente, se colocam no seu lugar. É como se você estivesse protegido por uma abóbada celestial e, em cada encontro, o outro ao lhe ver, se deixa levar por um complexo sentimento de compaixão. Isso faz com que o aniversário se torne a única data do ano em que você pode ser você mesmo, sem culpa.

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Pentecostes

Os dias de primavera finalmente chegaram. Termômetros marcam 20 graus e fazem todos saírem, caminharem ou pedalarem. O movimento agora é contínuo e a pequena vila onde vivo floresce. Tudo é bonito e todos parecem alegres. Comemora-se hoje, aqui na Alemanha, o dia de Pentecostes, quando depois de 50 dias da Páscoa, o Espírito Santo se manifestou, em forma de fogo, aos discípulos. Dia de acender uma vela ou fazer uma fogueira.
Bom, eu permaneço no apartamento, quieto e um pouco distante, estudo para a prova teórica no intuito de obter, ainda este mês, minha carteira de habilitação.
Ontem, desentoquei somente a noitinha para levar o saco de lixo. Um ato banal e solitário, um passeio também interno, instigante, envolvente, penetrante. Acabei por fotografar algumas coisas que vi, é uma pena, porém, que as fotos não conseguem reproduzir o que senti! Que lugar é esse??? Eu sempre me pergunto isso!