Arquivo da categoria: A excêntrica família do Senhor Quadros

Calendários “sem” primaveras

A primavera chegou ao hemisfério norte! Os calendários apontaram o dia 20 de março como o início da estação das flores por toda Europa.
Em minhas poucas andanças pela Alemanha, já que, normalmente, abandono a comunidade somente uma vez na semana em direção à Schlitz, município ao qual pertencemos e, aos nossos olhos uma metrópole. Afinal somos apenas trezentos habitantes por aqui, já na “grande” cidade vivem, aproximadamente, três mil. A maioria é turca. Há também muitos russos e alguns alemães. Semana passada quando me obriguei a entregar umas cartas nos correios, fui tomado por uma grande alegria ao ver as pessoas arrumando os seus jardins e curtindo o início da nova estação.
Durante a noite, no jantar, não pude deixar de compartilhar com a casa Jawlensky o meu regozijo.
Contei, sorri e tomei um pedaço de pão com queijo na cara. A senhora Boa teve um ataque de fúria pelo fato do calendário indicar primavera, embora as temperaturas, durante a noite, estarem abaixo de zero e ela se obrigar a vestir o casaco de inverno em plena primavera, mas na primavera, segundo ela, vestimos camiseta, sendo assim não podia estar escrito primavera nos calendários, pois está frio.
Imaginem vocês a dramaticidade da situação. Duas horas conversando, acalmando e convencendo a cidadã de mais de sessenta primaveras, de que este é um momento de transição e que em algumas semanas, provavelmente, estaremos libertos e vestiremos camisetas, bermudas e saias.
Ainda com lágrimas nos olhos a Senhora Boa voltou aos seus afazeres na cozinha, mas, antes que eu saísse, jurou que iria riscar, de todos os calendários da casa, a palavra primavera.

Nosso calendário e a primavera descartada...
Um dia depois… O calendário da nossa sala … sem a primavera.
A Senhora Boa em sua tarefa doméstica...
A Senhora Boa em sua tarefa doméstica…

 

Noite no porão

A noite é, em si, algo místico. A necessidade de uma luminosidade artificial para nos livrar da penumbra transfigura tudo. É a prova cabal da fraqueza de nossos sentidos. Não somos corujas e nem morcegos. A noite com suas luzes criadas, pálidas, quentes, amareladas, brancas, nos deixa em intimo contato com o sintético.
Claro que precisamos da luz natural tal como o lagarto que, através dela, mantém-se ativo. Temos a necessidade do dia para nossas funções vitais, mas é o ocultismo noturno que nos transforma em artistas. As ideias mais brilhantes, ignóbeis, estapafúrdias nos surgem quando, no céu, as estrelas estão a brilhar.
Ontem, depois de um curto passeio, tive uma idealização… aproveitar a magnitude da noite para, com ajuda de algumas lâmpadas incandescentes, arrumar e pintar o corredor do nosso porão.
São quase cinco e meia. Logo a manhã se fará linda e eu amargurarei as consequências de minha impensada força de vontade.

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A cafeteira hipnotizadora

Em uma casa, como a Jawlensky, de inúmeros cômodos e dezenas de pessoas é possível imaginar que coisas inexplicáveis acontecem o tempo todo.
Nas últimas semanas tive que lidar com uma cafeteira hipnotizadora.
Outro dia, lá pelas tantas da madrugada, senti um cheiro forte de café. Pensei que era sonho. Pela manhã, percebi que a cafeteira estava ligada e as garrafas térmicas cheias. Fiquei intrigado.
Na hora do desjejum, perguntei se alguém havia feito café na noite anterior. Ninguém se manifestou.
Um dia depois, estou a trabalhar no jardim, quando minhas narinas são tomadas pelo aroma inebriante dos grãos arábicas. Assim que chego na cozinha, cafeteira ligada e ninguém a vista. Durante a noite, a mesma história.
Durante cinquenta e seis horas, a tal máquina não parou de funcionar e eu não encontrei nenhuma explicação para o tal fenômeno. O consumo de um pacote de café orgânico por dia, como estava acontecendo, iria nos custar no fim do mês 159,00 euros.
Temendo a falência eu fiquei de tocaia no quarto de passar roupas. Duas e cinquenta e cinco da madrugada me entra Belíssima, de roupão, na cozinha e me liga a cafeteira.
Faz dois anos que Belíssima mora conosco. Ela tem síndrome de Down, gosta de teatro, dança, pratica canoagem, alpinismo, natação e tantas outras coisas que só de pensar já fico cansado. Belíssima ama abraçar. Vive a nos agarrar e, se deixamos, vira um pingente de mais de sessenta quilos.
Muito mais sério do que o meu normal, eu a indaguei sobre o ocorrido. Ela abaixou a cabeça e silenciou. Antes de voltar para o quarto, prometeu não mais fazê-lo.
Um dia depois, quatro garrafas térmicas cheias.
Indignado, chamei Belíssima para uma conversa no escritório. O tal lugar aqui em casa é tabu. Tipo sala de orientadora educacional.
Ao ser questionada, ela chorou, se descabelou e confessou que mesmo contra a sua vontade ela foi obrigada pela cafeteira a fazê-lo. A máquina simplesmente a hipnotizou e, caso ela não o fizesse, as consequências, que ela não soube me dizer, seriam terríveis.
Eu respirei, mexi nos meus poucos cabelos e, diante da inocência de belíssima, me restou “ressuscitar” uma cafeteira antiga e “enterrar” a nova.
O final, feliz, é que depois disso, Belíssima parou com a mania de fazer café e nós economizamos uns bons euros.

A última foto da malévola cafeteira.
A última foto da malévola cafeteira.

Os autista pira!

Tanto aqui na casa Jawlensky quanto em nossa comunidade, muitos aldeões tem estampado em suas carteiras de identidade a palavra autista.
São praticamente oito anos convivendo diariamente com essas pessoas que, para mim, já se tornaram seres em si, únicos e com nome próprio. É claro que, como profissional, não posso ignorar as características evidentes e comuns que os une em um diagnóstico. Evito, como posso, generalizações excessivas, mas existem traços comportamentais dos quais eu não posso fugir. Um deles é a história da “universalização do fato”. Por exemplo, se em um domingo eu saio com um carro vermelho e busco uma garrafa de leite, isso significa que todos os domingos eu terei que sair com um carro vermelho para buscar uma garrafa de leite. Quando, por algum motivo, eu não poder ir, ou pegar outro carro, entraremos em crise.
Imaginem vocês que, desde sempre, as quartas-feiras o papel velho é recolhido para reciclagem. Ronald, com seu mini trator, passa em cada casa aqui da vila, junta, sorteia, empilha e os armazena de forma impecável.

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Eis que segunda-feira, Ronald telefonou para cada casa e comunicou que o recolhimento dos papéis ocorrerá não mais as quartas e sim as quintas-feiras.
Eu, na autoridade de pai de família, tive que compartilhar tal informação com meus excêntricos moradores. Após o comunicado, alguns segundos de absoluto silêncio e a manifestação, representada pela pintura abaixo, do que aconteceu.

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Sol de primavera

Embora as árvores ainda estejam peladas e as temperaturas não ultrapassem os dez graus Celsius, a primavera aqui no Richthof se manifesta de forma tímida, porém plena.
Enquanto acompanho Thommy no seu caminhar de volta para casa, sinto a força, ainda que tênue, de um sol distante. O céu pesado e cinzento dos últimos quatro meses se abre em uma mescla azul e amarela.

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A pluralidade infinita de flores que experimentei em boa parte de minha vida subtropical esvaiu-se aos trinta. Hoje, dada a escassez, em boa parte do ano, de uma flora colorida e cheirosa, aprecio com demasiada atenção o encontro com esses seres essenciais para a alegria humana.
São mais ou menos quatrocentos metros entre a marcenaria onde Thommy trabalha e a casa Jawlensky onde moramos.
Apesar de algo quotidiano o caminhar entre a imensidão dos alerces é um fenômeno incrivelmente único. Thommy, com seu andador sem tração alguma, é em si um ser incrivelmente lento. Estar com ele é ganhar de presente a possibilidade da contemplação do imperceptível.
Foi com Thommy, ou melhor, com o tempo quase infinito que ele me deu que aprendi a olhar as margens prosaicas do caminho, os cantos comuns e obsoletos.
Penso que é por isso que, dentre todos aqui da minha excêntrica família, este ano eu fui o primeiro a descobrir os ninhos pitorescos de uma estação que ainda está por vir.

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